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Poemas de agora

Filtering by Category: Poemas de agora

ZUHAITZA 

Maria S. Mendes

Gosto deste poema porque reconheço nele a palavra “poema” na minha língua, ainda que o poema esteja escrito em eusquera. Pensando melhor, reconheço nele a palavra “poema” em eusquera, ainda que seja igual na minha língua. Quando o encontrei, primeiro, foi a estranheza de um conjunto de letras ordenadas sem ligação a nenhuma língua por mim conhecida, embora se percebesse um título e uma sequência de versos. Que língua é esta? Depois, foi a descoberta de “poema” no meio daquelas letras, como uma porta de entrada para um lugar incompreensível.

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Reading Scheme

Maria S. Mendes

“Here is Mummy. She has baked a bun. / Here is the milkman. He has come to call. /Here is Peter. Here is Jane. They like fun”. Neste ponto, a mãe manda embora as duas crianças – “Go Peter! Go Jane!” – para deixar entrar o leiteiro, surgindo assim a possibilidade de o verso “She has baked a bun” não se referir a um bolo, mas sim ao resultado da relação da mãe com o leiteiro. “He has come to call” e “Come, milkman, come!”, têm um sentido sexual explícito, que se torna ainda mais claro, quer pela exclamação, quer pela repetição do verbo. Neste ponto, ficamos a saber que, naturalmente, o leiteiro gosta da mãe e que a mãe gosta de todos eles, o que pode indicar que tem estima pelas duas crianças e pelo leiteiro, mas também que o leiteiro não é, ou poderá não ter sido, o único homem com quem a mãe se relacionou.

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The first to die was PROTESILAUS

Maria S. Mendes

Gosto deste poema porque é escrito através de Homero, em vez de ser uma tradução. Como em todo o livro de Alice Oswald, estamos aqui perante um fragmento da Ilíada e da vida de um soldado, precocemente interrompida, tal como a casa semiconstruída e as terras que, deixadas para trás, são reduzidas aqui a uma mera sequência de nomes espaçados entre si (“Pyrasus     Iton Pteleus Antron”).

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A Story of Stolen Salamis

Maria S. Mendes

Em suma, gosto desta pequena história porque me fez pensar sobre como, de um certo modo, as palavras estão para poemas como a carne está para salsichas. As palavras são importantes porque são a matéria-prima que mais usamos para comunicar e pensar: são actividades relacionais fulcrais. Logo, um cuidado com as palavras denota um cuidado com actividades relacionais deste género, tanto na nossa relação connosco próprios, como na que mantemos com os outros.

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Cães Que Brincam

Maria S. Mendes

Gosto deste poema porque se esforça por não ser uma alegoria simplista, pois, apesar de evidenciar a riqueza do potencial metafórico existente na imagem de dois cães à luta por um trapo velho, tenta que estes cães, que podem ser símbolos hipotéticos de tudo e mais alguma coisa, nunca deixem de ser dois cães a brigar por um trapo velho. A virtude maior do poema reside no ímpeto autocorrectivo despudorado em que se baseia essa tentativa esforçada de evitar que o poema se transforme por completo numa especulação melancólica, não obstante o final do poema parecer indicar isso mesmo. Trata-se de um daqueles casos em que a luta interessa mais pelo seu valor enquanto exercício do que pelos seus resultados finais.

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Soneto não me mintas, não me inventes.

Maria S. Mendes

Gosto deste poema porque tem catorze versos que consigo parafrasear, o que nem sempre me acontece com outros poemas. O poeta queixa-se de que o soneto, a forma poética escolhida em , o deita a perder. O poema que compõe é um virtuoso exemplo de uma diatribe: o poeta lamenta o facto de o soneto ser incapaz de lhe ser fiel, incapaz de dizer as verdades ou aquilo que sente. Ao invés de ser “claro, frontal”, o soneto é “charlatão”, torce a verdade, mente e inventa, é impostor, “mau imitador” e “mau espelho”.

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Melody

Maria S. Mendes

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Mary Ruefle, Melody

© Mary Ruefle

 

Gosto deste poema porque o posso ler do início para o fim e do fim para o início e, também, noutras direcções, como de baixo para cima ou de cima para baixo (em profundidade). Se o início foi apagado, então não há a obrigação de o começar neste ou noutro ponto qualquer, posso escolher o meio, “This is a pleasure! Your voice here”; ou lê-lo de baixo para cima, partindo daquela imagem de um tecido rasurado (com um coração?) para “paradise is invaded”.

 

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Talvez o mais estranho no poema seja vê-lo apagado. Grandes manchas de texto apagadas, misturadas com fragmentos de frases – que escaparam – e pedaços de imagens que parecem coladas, como num diário de viagem. Mais do que palavras alinhadas, o poema é uma imagem – esta imagem de esquecimento e resistência – e, como tal, dotada de uma superfície e de uma profundidade. Continua para lá da página, para baixo, percorrendo todas as palavras e imagens apagadas que percebemos existirem num estado de latência. E lembra-nos de que apagar também pode ser um tributo à persistência (como o desenho de de Kooning, rasurado por Rauschenberg), uma forma de construir a possibilidade de uma arqueologia e o convite ao mergulho num espaço potencial. Ou de, ao contrário, procurar (sem sorte?), eliminar o que existe para escrever o novo – “raspado de novo”, o palimpsesto – mantendo-nos a nós, leitores, à tona de uma História que vai longa.

Também posso ler esperando nos intervalos, nos espaços em branco que medeiam a procura de sentido que, como dita o hábito, os olhos vão perseguindo: os olhos procuram um sentido estável, razoável e veem na palavra essa tábua de salvação. Querem, muitas vezes, ler à pressa, perceber depressa. Porque se habituaram – porque nos habituámos – a que o tempo nunca é suficiente, é sempre urgente chegar a outro ponto, estar noutro ponto. Mas os espaços em branco são, afinal, onde tudo o que há de importante, tudo o que há para saber, se encontra. Obrigam-nos a andar mais devagar, a deixar que exista um volume de silêncio entre mim e as coisas e deixar-me a mim sozinho ou sozinha?, com os meus pensamentos e intuições.

Volto ao início (o das palavras), porque, apesar de tudo, é difícil escapar ao início das coisas, ao impacto original que tendemos a confundir com o Amor. E o poema começa assim: “poetry. What is. It”.

Marta Cordeiro


Marta Cordeiro é professora na Escola Superior de Teatro e Cinema do IPL. O primeiro poema que decorou foi a cantiga de amigo “Ermida de S. Simeão”. Declamava-a por graça e a troco de qualquer recompensa. Ler aqui

Ectopia

Maria S. Mendes

 

Ectopia

 

A stout bomb wrapped with a bow. With wear, you tear. It’s true you sour or rust. Some of us were sure you’re in a rut. We bore your somber rub and storm. You were true, but you rust. On our tour out, we tore, we two. You were to trust in us, and we in you. Terribly, you tear. You tear us. You tell us you’re true. Are you sure? Most of you bow to the mob. Strut with worms, strew your woe. So store your tears, tout your worst. Be a brute, if you must. You tear us most terribly. To the tomb, we rue our rust and rot. You tear. You wear us out. You try your best, but we’re bust. You tear out of us. We tear from stem to stem. You trouble, you butter me most. You tear, but you tell us, trust us to suture you.

 

Harryette Mullen, “Ectopia”, Sleeping with the Dictionary. Berkeley: University of California Press, 2010. 

© 2010 by the Regents of the University of California. Published by the University of California Press.

 

 

Gosto deste poema porque me enganou não uma, mas duas vezes. Inicialmente, pensei que nele se caracterizava uma relação que se desfez, talvez, depois de uma traição. Assim o pareciam indicar versos como “some of us were sure you’re in a rut”, no qual “rut” tem a conotação sexual de copular, ou de se estar excitado sexualmente. Também versos como “You tear us. You tell us you’re true. Are you sure?” poderiam ser lidos como ilustrando alguém que, apesar das suas promessas, destrói a relação em que se encontra.

Esta explicação não parecia, todavia, ser totalmente persuasiva, sobretudo quando se relê o primeiro verso “A stout bomb wrapped with a bow”. Não fazia sentido que tal notícia de traição fosse enrolada por um laço (uma imagem que aponta para uma prenda ou para algo bom). Talvez, repensei, o poema descrevesse a ideia de que a linguagem por vezes nos atraiçoa. Versos como “You were to trust in us, and we in you. Terribly, you tear. You tear us.” ilustrariam as dificuldades de uma poetisa que, de certa forma, depende da linguagem, precisando de confiar nela para conseguir descrever imagens num poema, pelo que “tear” (rasgar) se poderia referir à distância que existe entre as palavras e aquilo que delas conseguimos fazer.

Ambas as leituras ignoram, contudo, o título do poema no qual, como se estivéssemos perante uma adivinha, se esconde a sua explicação. “Ectopia” aponta para uma gravidez ectópica, um caso em que o óvulo fertilizado não se desenvolve no útero, mas sim nas trompas ou na cavidade abdominal. Este tipo de gravidez precisa de ser tratado de emergência, sendo necessário pôr-lhe fim. Percebe-se assim que o primeiro verso descreva um laço (uma prenda, a gravidez), que esconde uma bomba (a necessidade de a interromper). Segue-se o verso “With wear, you tear” que alude à possibilidade de, se a gravidez continuar, poder romper o tubo uterino. Segundo o OED, a palavra “rut” indica igualmente “to beget a child” (ter uma criança), o que, juntamente com o verbo "bore" ("to bear") ajuda a provar a leitura deste poema. No verso “We bore your somber rub and storm” “somber rub” ilustra duas coisas que se movem uma contra a outra causando uma certa fricção (a mãe e o embrião em conflito, ou talvez a mãe que massaja a barriga durante aquilo que provou ser uma tempestade e uma situação sombria).

Assim, “on our tour out, we tore, we two” pode indicar a ruptura das trompas do falópio ou um aborto prematuro. Nesse verso tão bonito, “we” e “we two” são repetidos, apontando-se para a existência conjunta da mãe e da criança, quando “terribly, you tear”. A aliteração obsessiva em “two”, “terribly” e “tear” acentua esta imagem, ainda sublinhada por “trust” (mãe e feto deviam confiar um no outro, pois existiam como uma única entidade, mas são separados quando o embrião se desfaz). No final do poema, a mulher pede assim ao embrião que não manifeste a sua infelicidade (“strew your woe”), que guarde as lágrimas, bem pode fazer o seu pior e ser um bruto, mas está a levá-los até à sepultura (nova aliteração em “tomb”), onde ambos apodrecerão.

A palavra “ectopia” deriva do Grego ektopos, e indica algo longe ou fora do seu sítio, sendo recuperada neste poema extraordinário para caracterizar a conversa entre uma mãe e o seu bebé, que não é só a ilustração de uma gravidez ectópica, mas também a utopia do embrião de que tudo poderia correr bem, de que por um momento poderiam não ser separados um do outro, e as breves respostas da mãe, que usam frases curtas para explicar aquilo que não deveria nunca precisar de ser explicado.

Maria Sequeira Mendes


Maria Sequeira Mendes é professora na FLUL e colabora com o Teatro Cão Solteiro.

Humbles

Maria S. Mendes

 

Humbles

 

If you have hit a deer on the road at dusk;

climbed, shivering, out of the car

with curses to investigate the damage

done, and found it split apart and steaming

far-flung in the nettle-bed, utterly beyond repair

then you have seen what is not meant to be seen

is packed in cannily, coiled, like parachute silk

but unputbackable, out for the world to witness

the looping, slicked-up clockspring

flesh’s pink, mauve, arterial red,

and there a still pulsing web of royal veins

bearing the bad news back to the heart;

something broken, something hard, black,

the burst bowel fouling the meat

exposed for what it is, found out – as Judas,

ripped from groin to gizzard, was found

at dawn, on the elder tree, still tethered to earth

by all the ropes and anchors of his life.

 

Frances Leviston, “Humbles”, Public Dream. London: Picador, 2007.

© Frances Leviston.

Frances Leviston's Poetry 

 

Gosto deste poema e do modo como se apresenta numa longa e complexa frase, que pode ser considerada uma lição sobre como não se deve interpretar poesia. “Humbles” começa por se dirigir a quem atropelou um veado na estrada ao fim do dia e sabe que viu aquilo que não deveria ter sido visto, conhecendo a sensação de quem sai do carro para averiguar se existem danos e se apercebe de que “o que está feito não pode ser desfeito” (Macbeth, V, i, 63-4).

Parece existir preocupação com o veado, mas a linguagem usada no poema é mecânica, como se pode observar pelo uso de expressões como “apart and steaming”, “utterly beyond repair”, “slicked-up clockspring” (que se pode aplicar a um relógio, mas também aos componentes do motor de um carro), o que nos leva a duvidar sobre se a pessoa no poema estará mais preocupada com o veado, com o carro ou com ambos.

Seguem-se imagens de coisas “incolocáveis” que têm, no entanto, uma importante diferença entre si: desmontar a seda de um pára-quedas ou um relógio não causa necessariamente a culpa moral que aqui se associa à morte de um veado (pelo menos, assim o faz parecer o uso da adversativa no verso “like parachute silk, but unputbackable”).

Num momento de pausa, a observadora vê o tempo que leva até o sangue parar de pulsar nas veias do veado e que corresponde ao intervalo necessário para que as más notícias cheguem ao coração (“bad news back to the heart”). Neste momento, tudo muda e não pode ser remediado, “something broken, something hard, black”, “exposed for what it is”. O que se encontra à mostra para o mundo testemunhar exterioriza aquilo que geralmente se esconde e que pode agora ser compreendido pelo que realmente é, levando o poema até à imagem inesperada de Judas, cujas entranhas descobertas expõem o seu crime.

À semelhança do que sucede neste episódio, um texto de crítica literária pode ambicionar revelar aquilo que se esconde – a técnica formal do poema que, quando revelada, não pode voltar a ser encoberta. Poder-se-ia, por exemplo, descrever o uso extraordinário da rima interna e da aliteração no poema de Leviston, em versos como “black / the burst bowel”, “from groin to gizzard”, “packed in cannily, coiled”. Ou o modo virtuoso como o poema é pontuado e que parece ter o propósito de colocar o leitor numa situação parecida à da pessoa que sai do carro e observa o veado, ou de quem pára para ver Judas e precisa de fazer uma pausa para dar um sentido ao que está a acontecer. Contudo, dissecar os órgãos internos de um poema, interpretá-lo para o decifrar, afecta irremediavelmente o seu sentido, tornando-o “incolocável” (“unputbackable”). O título do poema nomeia assim o exercício de tornar o leitor humilde (“umbles” designa as entranhas de um veado, enquanto “humbles” aponta para o modo como Judas é aqui duplamente assassinado, enforcado e esventrado), para que este demore a ler o poema e nada mais, evitando mostrar os seus órgãos internos ou externos, como temo ter acabado de fazer.

Maria Sequeira Mendes


 

Maria Sequeira Mendes é professora na FLUL e colabora com o Teatro Cão Solteiro.

Carta para A.

Maria S. Mendes

 

carta para A.

 

viste que os dias não passavam

disto, e viste bem. desse lado

do céu, tens o melhor miradouro

sobre a madrugada. se encontrares

o pintainho que sepultámos,

em segredo e lágrimas, no

quintal das tias, pede-lhe o

arco da sua asa nas noites de lua nova.

remete-me, quando puderes,

pacotes de chuva miúda, gosto

de a ver decalcar a terra, fundir-se

com as sementes de milho

no canto da achadinha.

 

entretanto, vou montando o

telescópio, com as instruções

que me deste. põe-te à vista

e combinamos um gelado a

meio caminho,

à hora da infância.

 

Renata Correia Botelho, “Carta para A.”, Avulsos, por causa, 2001. Lisboa: Língua Morta, 2010.

Aqui publicado com autorização da autora. 

Gosto deste poema porque sim. Começar deste modo o texto tem duas vantagens: em primeiro lugar, a justificação remete para as respostas da infância, mesmo sabendo que porque sim não é resposta; em segundo, evita que diga na primeira frase que gosto deste poema porque me comove. Mas, sim, estas palavras ordenadas por Renata Correia Botelho e envoltas pelo título “Carta para A.” desordenam-me as emoções, confirmando na minha relação com o poema o poder mais fino e mais forte da poesia.

É o “pintainho” sepultado “em segredo e lágrimas”, é a “chuva miúda” nas "sementes", é o "gelado" ainda desejado "à hora da infância": o poema fala-me da promessa de vida e da certeza da morte, conciliando a recordação cúmplice do passado e a vontade inata de futuro. O “pintainho” sepultado ensina a morte na infância, a dor partilhada, assim como o “gelado” ensina o prazer, a alegria partilhada, e a "chuva miúda" nas sementes marca a renovação, o ciclo da dor e da alegria.

Aceita-se o prazer da alegria como se aceita a dor da morte – por ver que “os dias não passavam / disto” – pela relação com o ciclo natural da “noite” e da “madrugada”, da “lua nova”, pela ligação entre as “lágrimas” e a “chuva miúda”, entre o “céu” e a “terra” molhada. A “chuva miúda” funde-se com as “sementes de milho / no canto da achadinha” para dar fruto, e a infância tem essa promessa de fruto cuidado pelas afeições familiares, que são como a casa que está sempre por perto no “quintal das tias”.

Na infância, como no poema, estão o “segredo” e as “lágrimas”. A memória afetiva recupera o “segredo” e as “lágrimas” e conhece as “instruções” secretas para montar o “telescópio” – são as mesmas "instruções" secretas para montar o poema (“segredo”, “lágrimas”, palavras, emoções). Perante a distância, há uma tentativa de aproximação para escrever a carta a “meio caminho” e pôr “à vista” “A.” – alguém, anónimo. A memória afetiva é a memória telescópica que seleciona, de um universo de experiências passadas, a recordação-emoção que o poema vai ampliar. Nesta ampliação, encara-se a morte, o que está “desse lado / do céu”, mas a morte tem alguma coisa de familiar e é aqui habitada por A., pelo pintainho, pela chuva.

O poema foi publicado em Avulsos, por Causa (desde 2001, houve três edições) e chegou-me cantado pela voz de Maria Antónia Mendes, de A Naifa. O grupo musicou-o e incluiu-o no álbum Não se Deitam Comigo Corações Obedientes (2012). Como uma carta enviada sem destinatário conhecido, o poema circula no seu envelope com o título “Carta para A.”.

Teresa Jorge Ferreira


Teresa Jorge Ferreira é doutoranda em Estudos Portugueses – Estudos de Literatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro do IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Volta sempre à poesia porque gosta de atividades radicais.

The rains of Castamere

Maria S. Mendes

 

The rains of Castamere

 

And who are you, the proud lord said, 

     that I must bow so low?

Only a cat of a different coat,

     that’s all the truth I know.

In a coat of gold or a coat of red,

     a lion still has claws,

And mine are long and sharp, my lord,

     as long and sharp as yours.

And so he spoke, and so he spoke,

     that lord of Castamere,

But now the rains weep o’er his hall,

     with no one there to hear.

Yes now the rains weep o’er his hall,

     and not a soul to hear.

 

 

George R. R. Martin, “The Rains of Castamere”, A Storm of Swords. New York: Bantam Books, 2000.

 

Gosto deste poema porque, apesar de ficarmos rapidamente com a certeza de que uma pessoa interage com outra e com a impressão de que algo de funesto acontece após essa interacção, não somos capazes de responder de pronto a perguntas básicas como “O que é que se passa realmente?” ou “As duas pessoas falam uma com a outra ou uma fala enquanto a outra escuta?”.

É possível que o esforço a que somos então obrigados leve a reparar que estamos perante uma balada popular (uma curta cantiga de feição narrativa que, como nas antigas baladas medievais inglesas e escocesas, alterna entre tetrâmetros e trímetros, geralmente jâmbicos, e se organiza em quadras rimadas no segundo e quarto versos), assim como é possível que sejamos levados a reparar na subtileza com que o lorde de Castamere é referido na terceira quadra. O emprego do demonstrativo “that”, em detrimento do artigo “the”, parece sugerir que esse lorde é o mesmo “lorde orgulhoso” a que o narrador se reportara no primeiro verso, e não o interlocutor calado que afinal apenas o escuta. Se assim for, a pergunta inicial não implica uma dúvida genuína, pois a resposta que se lhe segue é dada pela mesma pessoa. Esse lorde não quer saber quem tem diante de si. Pelo contrário, pretende afrontá-lo, questionando a necessidade da vénia. E mais o afronta de seguida, quando argumenta que, não obstante a maior exuberância do seu rival (aqui metaforizado num leão num “coat of gold”, por oposição a um “coat of red), é tão forte e destemido quanto ele. O tom é, portanto, o de uma ameaça.

O desfecho do poema parece, porém, aziago. O contraste entre a verbosidade dos primeiros oito versos e o silêncio sepulcral dos últimos é inegável, e é acentuado quer pela adversativa (“but”), quer pelo estribilho final. As ligeiras diferenças que esse estribilho introduz oferecem aliás uma explicação para o cenário desolador dos salões desse lorde no presente. Enquanto “no one there” pode simplesmente reportar-se à ausência de pessoas em determinado sítio, “not a soul” parece sugerir que essa ausência se deve ao facto de tais pessoas terem deixado de existir. É a isso que alude o duplo sentido do verbo “to weep over”: a chuva chora sobre aqueles salões (cai sobre os telhados), mas chora também transitivamente o sucedido (lastima o destino dessas pessoas). E o mesmo acerca do verbo “to hear”, que tanto pode referir-se ao facto de já não haver quem ouça a chuva a bater como pode referir-se ao facto de já não haver quem se faça ouvir.

Há uma última dificuldade de tradução. A palavra “coat”, que serve fundamentalmente para designar o traje que os distingue, preserva um valor heráldico. O poema surge em A Storm of Swords, o terceiro livro da saga A Song of Ice and Fire, de George R. R. Martin (que conta as guerras pelo trono dos Sete Reinos de Westeros entre diferentes famílias), e corresponde à letra de uma canção que celebra a queda da casa de Reynes, sediada em Castamere. A afronta de que os primeiros oito versos dão conta pretende retratar a insurreição dos Reynes contra os seus soberanos, os Lannister, e os leões em que os dois são metaforizados são os leões que figuram nos brasões (coat of arms) das duas casas: um leão de cor dourada, no caso dos Lannister, e um leão vermelho, no caso dos Reynes. É também essa insurreição, de resto, que justifica o extermínio dos Reynes, ao qual a metonímia dos salões desabitados então se reporta. Tal informação leva ainda a assinalar a homofonia da palavra “rains”. Ao aludir quer aos antigos senhores de Castamere, quer à chuva que agora se precipita chorosamente sobre os salões, o título põe então em destaque, desde logo, o contraste de que o poema se alimenta.

Nuno Amado


Nuno Amado é professor na Universidade Católica Portuguesa e escreveu uma tese sobre Ricardo Reis. Nunca aconselhou um poema a ninguém, mas admite abrir uma excepção quando descobrir um que possa ajudar as pessoas a serem mais felizes.

O que Eu Bebi por Você

Maria S. Mendes

 

O que Eu Bebi por Você

 

O que eu bebi por você

Dá pra encher um navio

E não teve barril

Que me fez esquecer

O que eu bebi por você

Nunca artista bebeu

Nem pirata bebeu

Nem ninguém vai beber

O que eu bebi por você

Quase sempre era ruim

E bem antes do fim

Eu já estava à mercê

O que eu bebi por você

Me fazia tão mal

Que já era normal

Acordar no bidê

Cada dono de boteco e catador de lata agora te sorri agradecido

Se o seu plano era contra o meu fígado, meu bem, você foi bem sucedido

Parabéns pra você

 

Clarice Falcão, “O que Eu Bebi por Você”, Monomania, Sony. Chevalier de Pas, 2013.

 

Gosto deste poema porque não se parece com um poema bom. Consistindo numa enumeração de coisas (algo normal em poemas) motivadas pela acção de beber por causa de um homem, começa logo com uma imagem muito rudimentar, na qual se mede quantidades de líquidos com recurso a um “navio”. Os versos seguintes apresentam, no entanto, uma nuance, por deixarem em aberto a possibilidade de a autora continuar a beber: se nenhum barril a fez esquecer e se ela bebe para esquecer, depreende-se que a tentativa de esquecimento prossegue. Nesse caso, convém perguntar o porquê do uso do pretérito, uma vez que o pretérito faz antever que o problema com o álcool é coisa passada.

O que torna o poema interessante, e próximo da melhor poesia, é a suspeição de que aquilo que parece óbvio não o é e, neste caso particular, o que me interessa perceber é o estado anímico em que se encontra a autora: está viva ou morta? Naturalmente, o que me desperta a atenção é a suspeita de que, por causa desses versos sobre o barril, está morta; a suspeição aumenta com os versos sobre artistas e piratas, dois tipos de personagem ligados à ficção, que parecem acentuar um contraste: personagens ficcionais podem beber muito, eternamente, até, mas a comparação empalidece quando comparamos os problemas ficcionais com a realidade. Os versos finais, estruturalmente diferenciados dos restantes pelo número mais longo de sílabas, parecem demonstrá-lo, notando que problemas de fígado podem ter consequências gravosas para personagens não-ficcionais: aquilo sobre o que se canta não são as tropelias de piratas ou artistas alcoólicos, mas a incapacidade de esquecer alguém através da ingestão de álcool de fraca qualidade — a falta de fundos é sempre um problema para alcoólicos — e as cenas tristes que se seguem ao consumo exagerado — a amizade com bidés, por exemplo. Não é por isso certo que o “fim” (no verso “E bem antes do fim”) seja o do consumo de álcool. Pelo contrário, parece-me que esse “fim”, que é coincidente com o fim do sofrimento, é o fim da vida e só nesse sentido representa o fim do consumo de álcool, algo demonstrável pelo antepenúltimo verso, em que quem enriqueceu às custas da autora (“donos de boteco” e “catadores de lata”) se ri apenas para o homem (presumivelmente porque ela está ausente). Além de todas as piadas que podemos discernir nos versos deste poema, a anedota maior é a pessoa que fala estar morta; e não é, aliás, fortuito que esta morta escreva em versos: o espaço de eleição para mortos se exprimirem é a poesia.

Este não é um poema bom apenas por, como alguém afirmou uma vez, todos os poetas bons estarem mortos; é-o, sobretudo, porque explora a possibilidade, muito concreta, de poemas, enquanto descrição de uma vida, poderem precisar de um falecimento para existir. Há casos, e este parece um deles, em que só é possível sermos artistas depois de mortos, porque só retrospectivamente é que a nossa vida tem interesse; nesse sentido, como se exprime naquela que é a verdadeira anedota do poema, algumas pessoas só conseguem ascender a poetas depois de o seu fígado cessar funções.

Telmo Rodrigues


Telmo Rodrigues é doutorado pelo Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras, com a tese For a Lark: The Poetry of Songs, na qual explora as relações entre a música popular e a poesia. É actualmente director da revista Forma de Vida.

 

fridge magnet 

Maria S. Mendes

 

fridge magnet 

 

the recorded opera rising like schnitzelling nostalgia

all conversation sweats across de mousse, ibis squat

on backpacks in the postcard riddled park

 

archbishops sip cool beers on subliminal rooftops

police parade in six pack spraying cracks in the

paving: show us your passport kiddo you don’t smell

 

australian; the hospital seemed like a palace until

you’re forced to buy back your own blood served

in ice cubes; elbows need translating this january afternoon

 

Joanne Burns, “fridge magnet”, Brush. Artarmon: Giramondo Publishers, 2014.

@Joanne Burns. Reproduced with the author’s permission.

 

Gosto deste poema porque encapsula a história colonial australiana e a abre como a um figo maduro, fazendo-me dar de caras com o seu centro pegajoso. A “recorded opera rising like schnitzelling nostalgia” leva-me directamente aos degraus de granito em frente à Ópera de Sidney, entre a multidão que assiste à projecção de uma ópera. O tom é mordaz, colocando ao mesmo nível martelos para bifes e a nostalgia da ópera, mas o poema não se revela por completo até chegar a “january afternoon”.

O Dia da Austrália – ou Dia da Invasão, como lhe chamam os aborígenes australianos – é a 26 de Janeiro, data em que, em 1788, uma frota de navios britânicos entrou no porto de Sidney, onde hoje se encontra o edifício da Ópera. É por isso que os polícias que patrulham a estrofe do meio não estão só a verificar passaportes, mas também a guardá-la contra “uprisings” (já sugerido na “opera rising” do primeiro verso).

A Ópera ergue-se na península de Bennelong, nome do aborígene que em 1789 foi raptado pelo primeiro governador da colónia porque este precisava de um intérprete. O governador estava sob as ordens do rei de Inglaterra, e ainda hoje a figura de Governador-Geral da Austrália representa o monarca britânico. Bennelong fugiu aos captores (tal como viria a escapar aos massacres e à varíola que dizimaram o seu povo). Veio mais tarde a ser intérprete, já por sua livre vontade, e o governador permitiu-lhe que vivesse onde hoje se encontra o edifício da Ópera.

A revolta do poema borbulha como as cervejas que os arcebispos beberricam na sua sublime indiferença. Burns refere-se a arcebispos como aquele que protegeu os padres pedófilos, e mais tarde, entre 2001 e 2003, veio a serGovernador-Geral (Peter Hollingworth). Um outro Governador-Geral aparece no poema “Seed” de Burns, sentando-se perto dela num cinema e “she was too / gutless to change seats and yell / traitor”. Esse Governador-Geral havia demitido, em 1975, o Primeiro-Ministro de então, o trabalhista Gough Whitlam.

Antes de ter sido demitido, Whitlam, tinha posto fim à política “Austrália Branca”, que limitava a imigração para a Austrália a pessoas de raça branca. Nos anos noventa, quando eu trabalhava na Ópera, Whitlam ainda era um figura formidável. Observei-o uma vez, durante o lançamento de uma nova companhia de dança, enquanto estava de pé sozinho no foyer. Os convidados falavam entre si, ou eram demasiado novos para saber quem Whitlam era. Ele virara-lhes as costas e estava a observar o vasto mural que ocupa a parede em frente à grande janela que dá para o porto de Sidney. O mural é da autoria de Michael Nelson Tjakamarra, um artista aborígene que pintava paisagens estilizadas vistas de cima.

No ano anterior à publicação deste poema, a Austrália começou a “processar” refugiados ilegais enviando-os para campos nas ilhas no Pacífico. O lamento, “you’re forced to buy your own blood served in / ice cubes”, articula a lógica punitiva desta política, em que se oferece asilo a refugiados na condição de que não seja dentro de território nacional.

O mural de Tjakamarra é – como Whitlam tão bem sabia, tomando vagarosamente a sua bebida – muito mais do que uma paisagem. É um mapa de território.

Isabel D'Avila Winter


Isabel D'Avila Winter, escritora luso-australiana, lê um poema de cada vez, e gosta daqueles que a fazem pensar lá com os seus botões, eh pá. Ou mesmo, ehehe. Detesta poemas que a fazem perguntar no fim, tipo filme francês, O quê?? E a criada?

Snack-bar

Maria S. Mendes

 

Snack-bar

 

Batem fotografias ao balcão

e a miúda da novela

por ter o filho

o bar a fechar

e a miúda por ter a criança

 

há uma máquina de imagens

linguagem aligeirada

que trata destas coisas

e não falha nunca

 

ou um livro sobre a mesa

aberto na página seguinte

à do café de ontem

também isto nunca falha

 

o tempo é todo

 

e o vento fecha-nos entre paredes

os barcos não saem

ninguém na lota

 

pomo-nos a imaginar

saídas para o amor

o tempo é todo                                                                                                                  

e a vida por acabar

 

e qualquer coisa ali à direita do verbo

e não sabemos colocá-la onde?

 

pomo-nos a olhar uns nos outros

e sorrimos

 

e terrível deter a miúda

que gosta do beijo no banco de trás

 

ela o diz

e que o tempo é todo

 

e que nada falha

e que a pose ao balcão

é uma saída para o amor

ou uma imagem

apenas uma boa imagem

 

e voltamos ao livro

e tanta coisa

tanta coisa mais por jogar

num pedaço de papel

e qualquer coisa na mesa do lado

e não o sabemos.

 

Hugo Milhanas Machado, “Snack-bar”, Clave do Mundo. Lisboa: Sombra do Amor Edições, 2007. 

@ Hugo Milhanas Machado. Aqui publicado com autorização do autor. 

 

Gosto deste poema porque encontro nele uma distracção atenta, que adensa um impasse entre interrupção e sucessão, através de imagens instantâneas que um olhar curioso vai recolhendo e sobrepondo.

Um snack-bar acolhe pessoas que se refugiam do vento numa zona piscatória e o olhar curioso do poeta entretém-sea “imaginar/ saídas para o amor”, retendo vários instantes do cenário onde se encontra e adiando o momento em que se fixará em algum deles – as fotografias que se tiram ao balcão, o bar a fechar, a miúda da novela que passa na televisão, o livro por ler sobre a mesa, a hesitação da escrita, o olhar uns nos outros, a vida desconhecida na mesa do lado. Creio que esta estratégia permite, simultaneamente, desdobrar o espaço da cena que encerra o texto e reverberar o tempo suspenso deste episódio.

Este duplo efeito de tempo (cronológico e meteorológico), que parece interromper o funcionamento da vida (“o tempo é todo/ e a vida por acabar”), enclausurando-a no espaço (“o tempo é todo/ e o vento fecha-nos entre paredes”), é confrontado com outros expedientes que, segundo o poeta, nunca falham, talvez por franquearem o acesso a novas realidades: “a[s] máquina[s] de imagens” (fotográfica e televisiva) e “o livro aberto sobre a mesa”. No entanto, nenhuma destas “saídas” sucessivas, que incluem imagens (“e que a pose ao balcão/ é uma saída para o amor/ ou uma imagem/apenas uma boa imagem”) e coisas (“e voltamos ao livro/ e tanta coisa/ tanta coisa mais por jogar/ num pedaço de papel/ e qualquer coisa na mesa do lado”), atrai a exclusividade do olhar demorado do poeta, gravitando entre todas elas, consciente do desconhecido que cada uma oferece (“e qualquer coisa na mesa do lado/ e não o sabemos”).

Apesar de o discurso do poeta decorrer na primeira pessoa do plural –  a única voz do grupo que o vento encerra no snack-bar – existe uma tentativa de singularização de outro protagonista, através de duas referências a uma “miúda” (“a miúda da novela/ por ter o filho”; “é terrível deter a miúda/ que gosta do beijo no banco de trás/ ela o diz”). Ela surge como uma fugaz expressão de desejo no feminino, resgatada da “máquina de imagens” para o texto, que o poeta vai construindo ao ritmo do impasse: “e qualquer coisa ali à direita do verbo/ e não sabemos colocá-la onde?”

Sara Campino


Sara Campino divide-se entre o trabalho em arquitectura e a investigação em literatura. Descobriu a sua paixão pela poesia quando reparou que guardava certos poemas na memória à espera de conseguir compreendê-los. 

Sewing Lessons

Maria S. Mendes

 

Sewing Lessons

 

Despite your lessons,

I never learnt to sew.

I could never master the fluid

movement required to darn a tear,

sealing it tight.

Could never emulate the steady rhythm

of your hands as you thread

the faint stitch through the lip

of the ripped fabric.

Your casual flick of the wrist.

The simple knot you tie with a gentle twist,

a bow formed from loose ends

and dangling cotton wisps.

Even now I bring you clothes.

Garments with gashes of flesh missing,

torn out by careless tumbles.

Blazers with burnished buttons slack

from too much wear.

I know what you will say.

I should learn to sew,

to seal up this gasping gulf,

but I bless my ignorant hands.

 

Ellen Davies, “Sewing Lessons”, Popshot Magazine, n.º 13, The Outsider Issue, 2015, p.9.

© Ellen Davies. Reproduced with the author’s permission.

Ellen Davies Poetry

 

Gosto deste poema porque me traz referências autobiográficas — e essa é uma razão válida e honesta para qualquer leitor gostar de um poema à primeira leitura: memórias de infância. Fui um anacronismo na minha geração (nascida na década de 60 do século XX). Sou uma menina prendada – aprendi a descer as bainhas dos meus vestidos (e a ler) aos 6 anos, com a minha mãe; aos 14 já não dizia a ninguém que sabia bordar, tricotar, fazer crochet (e que gostava do Eurico, o Presbítero). Tudo prendas embaraçosas para uma adolescente dos anos 80: I cursed my knowing hands.

Ellen Davies tem idade para ser minha filha. O que me coloca, como leitora, no meio de um abismo de que ela aqui fala e a parece separar à primeira vista da sua interlocutora no poema – a avó. A neta nunca conseguiu aprender a costurar; a avó lamenta-o de todas as vezes que ela lhe vai pedir que remende os rasgões e acidentes das roupas. Mas, apesar de simples contratempos que hoje em dia, tanto aqui como no País de Gales (de onde Ellen Davies é natural e onde vive), se resolveriam indo a uma loja das muitas cadeias de roupas baratas, “Even now I bring you clothes”.  Estes rasgões e acidentes dão-nos a ler, se atentarmos, feridas palpáveis, visíveis e invisíveis, de uma vida: “Garments with gashes of flesh missing/ torn out by careless tumbles” – o tecido e a pele cosidos pelas palavras: cortes profundos, resultantes de quedas descuidadas, trambolhões, que a deixam (roupa e poetisa) em carne viva – lutas e desgastes que indiciam o cansaço e o desânimo: “Blazers with burnished buttons slack/ from too much wear.” – o blazer, casaco formal, profissional, académico, de botões brunidos, alisados pelo efeito normalizador dos quotidianos “produtivos”, e lassos, quase a cair. Estas idas a casa da avó têm, pois, dois níveis de leitura: o arranjo de costura (um álibi) e a necessidade de consolo.

De resto, se a poetisa nunca aprendeu a coser, não foi por falta de sentido de observação ou de memória. A descrição, a partir do terceiro verso, da coreografia da costura, levanta a suspeita de que ela pudesse afinal fazê-lo, tal como o reproduz na construção dos versos – o movimento fluido rematado com decisão no quinto verso, o ritmo certo e cuidadoso que se lhe segue (“as you thread / the faint stitch through the lip/ of the ripped fabric”.), o golpe de pulso, inesperado, contido no décimo verso: “Your casual flick of the wrist”. Os próprios versos finais do poema – “I should learn to sew, to seal up this gasping gulf/ but I bless my ignorant hands” – recriam o tipo de solução de rematar as pontas soltas do trabalho, que supostamente seria incapaz de reproduzir: “The simple knot you tie with a gentle twist,/a bow formed from loose ends/and dangling cotton wisps”.

Na verdade, as pontas soltas continuam lá – a neta não sabe costurar (mas sabe coser versos), o abismo que se cava devido a essa teimosia, ou estratégia, continua (e as feridas de que deveria aprender a defender-se), mas tudo isto se remata com uma bênção a essa suposta ou real incapacidade, pois é com essas linhas que esta relação de amor e intimidade se cose e mantém, even now. E graças a essa ignorância há matéria para este poema, bless her.

Ana Maria Pereirinha


Ana Maria Pereirinha trabalha em edição, é tradutora e doutoranda no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). A sua relação com a poesia começou no jardim de infância, como slammer avant-la-lettre de grande sucesso, a rimar sobre marmelada e chocolate.

The New Higher

Maria S. Mendes

 

The New Higher

 

You meant more than life to me. I lived through

you not knowing, not knowing I was living.

I learned that you called for me. I came to where

you were living, up a stair. There was no one there.

No one to appreciate me. The legality of it

upset a chair. Many times to celebrate

we were called together and where

we had been there was nothing there,

nothing that is anywhere. We passed obliquely,

leaving no stare. When the sun was done muttering,

in an optimistic way, it was time to leave that there.

Blithely passing in and out of where, blushing shyly

at the tag on the overcoat near the window where

the outside crept away, I put aside the there and now.

Now it was time to stumble anew,

blacking out when time came in the window.

There was not much of it left.

I laughed and put my hands shyly

across your eyes. Can you see now?

Yes I can see I am only in the where

where the blossoming stream takes off, under your window.

Go presently you said. Go from my window.

I am in love with your window I cannot undermine

it, I said.

 

John Ashbery, “The New Higher”, Where Shall I Wander. Manchester: Carcanet, 2005.

 

Gosto deste poema pela sua ambiguidade. “The New Higher”, de John Ashbery, começa por sugerir uma relação cheia de vida (“life”, “lived”, “living”) entre um “You” e um “I” igualmente indefinidos, que se encontram nas extremidades da primeira frase do primeiro verso (“You meant more than life to me”).[1] A separação entre os dois é extremada pela forte cesura do primeira verso, pela tensão criada pelo encavalgamento, assim como pela cesura mais ténue do segundo verso. Estes efeitos contribuem, por sua vez, para a criação de, pelo menos, três cenários possíveis: um “I” que resistiu a alguma coisa, sugerindo dificuldade (“I lived through”); um “I” que viveu através de um ‘you’, que não o sabia (“I lived through/ you not knowing”); um “I” que viveu através de um ‘you’, sendo que um deles não sabia que o “I” estava a viver no decorrer desse processo (“I lived through/ you not knowing, not knowing I was living”). A possível ênfase métrica na primeira sílaba de ‘knowing’ contribui para este efeito desagregador, ao comprometer o ‘not’ que o precede. A leitura está assim a ser constantemente interrompida desde o início, do ponto de vista semântico e sintático, dando tempo para as pistas em stacatto serem absorvidas, uma a uma, antes de o verso ter tempo para pedir a sua própria continuação.

A dinâmica entre o “I” e o “You” dá lugar a um “we” indefinido, mas que agora aparece “together". De facto, o referente dos pronomes pessoais apenas surge no décimo verso da primeira estrofe (“When the sun was done muttering”). O leitor tem de, retrospectivamente, recuperar a indefinição que foi sendo sucessivamente deixada para trás: “passed obliquely” refere-se muito possivelmente aos raios de sol, sendo o par mais óbvio destes a janela que se encontrava “up a stair”. É de notar como “stair” se liga à descrição espacial que tinha sido criada pela rima interna com “chair” e “there”, criando assim o cenário de uma cena de voyeurismo. Não está ninguém (´There is no one’) no quarto de cima, mas tanto o leitor como os raios de sol personificados conseguem ver tudo. O uso de “muttering” contribui para a sugestão de secretismo, também presente na quietude de “leaving no stare”. Até os raios, livres de entrar e sair, coram “shyly at the tag of the overcoat near the window”, noutra intimação de ver demasiado. “Can you see now?”.

[1] itálicos meus. 

Inês Rosa


Inês Rosa é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). O seu interesse por poesia começou cedo, com os sonetos de Shakespeare (e a interpretação que Helen Vendler fez deles), mas foi em Cambridge que, entre bolos e chá, começou a falar e a escrever sobre poemas em geral, e sobre Wordsworth em particular. A forma soneto, Smith e Philip Larkin são outros dos seus interesses.

7.

Maria S. Mendes

 

7.

 

Meia sola é meia sola.

Será por isso que a cola

me cheira tanto a vinagre?

 

Mas meia sola é milagre.

E eis o que ninguém sabe:

que neste cantinho cabe,

na penumbra da oficina,

na casca do caracol,

esta pequena aspirina

que é a largueza do sol.

 

Pedro Tamen, "7", O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010.

Aqui publicado com a autorização do autor.

 

 

Gosto deste poema porque se deixa ir, apesar de saber que essa não é uma característica universalmente apreciada por leitores de poesia. Alexandre O’Neill, por exemplo, manifestou uma inclinação contrária quando escreveu que tinha “uma preferência marcada pelo escritor que, embora entregue ao embalo da escrita, é capaz de reflectir sobre o que escreve e romper com qualquer morceau de bravoure no qual estivesse a meter-se, rendido à facilidade” (em “Um Expedito Desembaraço”, no livro Uma Coisa em Forma de Assim). Acho que é uma questão de contexto. Provavelmente, O’Neill não estava a escrever numa altura em que a maior parte da poesia se inclina mais para “reflectir sobre” do que para escrever. Quando a poesia é quase toda pensamento e filosofia, sem rima nem ritmo, nem divertimento com sinais ortográficos, sabe melhor encontrar poemas que nos proporcionam uma fruição mais sensível.

Gosto deste poema porque faz isso, mas também porque é sobre isso, sobre o gozo que nos dá uma coisa bem feita e, em particular, o gozo que dá fazê-la. Se O’Neill sugere que o escritor só mostra que reflecte sobre aquilo que escreve ao romper com o virtuosismo ou a exuberância técnica (presentes na ideia de morceau de bravoure), o poema de Pedro Tamen oferece-se como uma alternativa. Equilibrando ideias e sons, pensamentos e ritmo (os dois lados a que tenho estado a aludir e a que se costuma chamar “conteúdo” e “forma”), este poema é ambos fruição e reflexão e responde a O’Neill o que ele certamente sabia: contrariar o embalo da escrita não é a única forma de pensar sobre ela e de evitar a facilidade – tirar conscientemente partido do momento em que se escreve é pelo menos tão difícil e mais gratificante.

“Meia sola” não é meia-sola. Ou seja, Tamen não está a começar o poema com uma constatação ontológica sobre uma peça de sapataria mas com uma celebração do processo. A sola está meia feita: o primeiro verso lê-se como “meia sola já cá canta”. Os dois seguintes põem momentaneamente em risco a interpretação celebratória. O cheiro a vinagre da cola, que rima com “sola”, parece sugerir que meia sola sabe a pouco. Daí a importância do “mas” que começa a segunda estrofe, a estrofe em que o reconhecimento do milagre (que rima com “vinagre”) se instala contra o travo amargo do fim da primeira. O milagre da meia sola muda o tamanho das coisas, ou revela que o tamanho das coisas varia com a nossa percepção delas. Na pequena oficina escura, há um pequeno remédio para a penumbra e o cheiro a vinagre: o sol largo que entra, ou em que reparamos, quando percebemos que meia sola não só é melhor que nada, como é bom. A “casca do caracol” une o homem e a oficina, diz-nos que este prazer de fazer justifica a existência. Se não é por isto que uma pessoa faz poemas, não é pelas melhores razões.

Sebastião Belfort Cerqueira


Sebastião Belfort Cerqueira. Desempregado. Lê e escreve alguma poesia. Gosta de rimas.