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Inéditos

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Formigas / ou / A morte explicada às criancinhas

Maria S. Mendes

Formigas

ou

A morte explicada às criancinhas

 

            1

 

Vê-se primeiro uma só formiga.

 

Parece perdida, enleada nas ervas,

movendo-se indecisa atrás e adiante,

sem saber muito bem que direcção tomar.

 

Lembra um turista que não sabe

em que país se encontra

nem entende a língua que ali se fala,

e procura orientar-se consultando um guia hostil

num lugar hostil.

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Caddy

Maria S. Mendes

Caddy

 

Pensei imaginar-te outra vez nua entre

coisas brancas panos nuvens ovelhas e

camarinhas frutos pequeninos que os teus

dentes brancos ligeiramente inclinados

para a frente para um beijo para mim

trincam e tu tapas a boca com a mão

e cospes caroços desenhas nos lábios

um sorriso de vestal apanhada pelo sol

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Sofrósina

Maria S. Mendes

 

Sofrósina

 

Olha: conseguimos!

Entre minérios vulgares

e berilo jadeite musgravite

diria estarmos perante um perfeito nove.

Uma moldura ficaria bem aqui

nesta relação finalmente estabilizada.

 

O caranguejo diagonou como um bispo

enquanto testava a minha força

numa máquina Gottlieb

e pagava outra rodada

à rapaziada sedenta

e a gasosa corria de grandes desfiladeiros

caindo entre anéis de profundos dedos

sob soturnos olhares

despedaçados sobre as pedras

como algas cadentes

quando a benitoíte se inflama sob a luz negra

e o estroboscópio obtura a pista

pelo último recluso.

 

Depois o cabedal da noite

como canga sobre a ganga

quando o seu braço encontraria o seu cachaço

e os dois rumavam à eternidade

num silêncio de olheiras

ainda zoando a cromados

e a pontes encavalitadas sobre 

baixos rios.

 

E depois ainda o grande mundo:

raios de cobalto no capote da noite

quando Trastevere era uma boémia

ou Aldous um nome para Oxford

não fosse o tempo chegado

e tivéssemos de arranjar uma solução

em cima dos joelhos

para a torção de sobriedade,

para o dealbar da ordem de serviço

quando estudantes passavam a técnicos

e baladas a despertadores.

 

Aqui agora nesta intenção de tempo

entre a beleza do ponto sem retorno

e a lúrida manhã

estalamos gengivas,

acordamos a espantada

húbris: os gregos saberão usá-la

com moderação. 

 

Daniel Jonas


Daniel Jonas nasceu no Porto, em 1973. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) e é mestre em Teoria da Literatura (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Publicou os livros de poesia  Os Fantasmas Inquilinos (2005), Sonótono (2007), Passageiro Frequente (2013), Nó (2014, Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes), Bisonte (2016) e Oblívio (2017), e também a peça de teatro Nenhures (2008). Recebeu o Prémio Europa - David Mourão-Ferreira pelo conjunto da sua obra. Escreveu EstocolmoReféns e o libreto Still Frank, todos encenados pelo Teatro Bruto. Traduziu, entre outros, Shakespeare, Waugh, Pirandello, Berryman, Dickens, Huysmans e Wordsworth, e também o Paraíso Perdido, de Milton. Ler aqui.

Esta mulher dormindo

Maria S. Mendes

 

Esta mulher dormindo

 

Mais um dia que se ajoelhou de faca na boca.

Esta mulher em máximo equilíbrio, sorrindo como uma estátua.

Esta mulher feita de carne e sono, embrulhando os filhos por estrear

Falhou em tudo e ri-se, de carvão a cercar o estômago

As narinas muito abertas à procura do ar.

As pernas tranquilas para o outro lado do corpo

Uma dor de furar cidades numa cara adolescente, estreita,

entre dois olhos

 

É mesmo ela, sem dúvida,

esta mulher de diversão para qualquer dia

um gesto desajeitado para qualquer ombro

o maior esquecimento da família, até aos domingos

E volta a cara para outro lado, de preferência à procura da luz

 

Mulher nua, no quarto, desistindo da sua lírica,

Olhando o tecto

Mulher encolhida na própria sina, encontro fatal

 

Os olhos comem

O corpo alcança

A mulher ergue-se no túmulo de outra vida

Desaprendendo de ser gente

 

Mulher de bater à porta em dias invisíveis

Calada, encostada à condição do seu lixo

Remexendo nele com línguas nos seios

 

Não lhe resta nenhuma casa, declarou a guerra perdida

Mas há-de vir uma desculpa que lhe baste para o nojo de estar

desperta

e o cheiro contínuo a orfandade

 

Mulher toda, cavalo elegante, praia

a vida é pouco mais que a humidade daquele quarto,

morte lenta por silêncio,

e um resto de nada

um resto de nada

 

Cláudia R. Sampaio

 

Cláudia R. Sampaio é poetisa, mas não só.  Em 2014 publicou o seu primeiro livro de poesia, Os Dias da Corja (Do Lado Esquerdo), seguindo-se A Primeira Urina da Manhã (Douda Correria), Ver no Escuro (Tinta da China) e 1025mg (Douda Correria). Desde então, tem colaborado em várias revistas e antologias de poesia. Vive em Lisboa com as suas duas gatas. 

[A irresponsável pergunta]

Maria S. Mendes

 

[A irresponsável pergunta]

 

Perguntar “o que é a relva?”

perguntar o que aponta longe

onde nem o verde

nem o azedo da selva

aprovariam o costume de perguntar

o que é denso

o que se espalha

o que cresce em abundância

em fios de cabelo verde atónitos

que jamais aprovariam

o costume de afastar

o objeto de seu sujeito esverdeado

pela pergunta

a irresponsável pergunta sobre o que é a natureza.

 

Rita Natálio, Plantas Humanas


Rita Natálio é artista e pesquisadora. Vive entre Lisboa e São Paulo. Publicou o seu primeiro livro de poesia Artesanato, pela não edições em 2015, pelo qual foi nomeada para o prémio Novos em 2016. Em 2017, publicou Plantas Humanas, também pela não edições. Faz ainda o projecto Antropocenas, com o coreógrafo João dos Santos Martins.  

Porém nos transportes

Maria S. Mendes

 

Porém nos transportes

temos lugares

imaginados

 

somos publicamente

levados no inverno

de A a B tendo atirado

para longe

para o chão

um cigarro

idêntico ao anterior

 

mas acrescente-se

nunca é coisa vagarosa

um cigarro aliás

só finjo que percebo

o advérbio vagarosamente

 

treme tudo nos mundos possíveis

 

mas voltando atrás

 

estávamos na paragem

com o tal cigarro

idêntico ao anterior

excepto na maneira de morrer

 

passa-se a língua pelos lábios

para chegar ao fim

fechar a conta

a um pedaço de tempo

mas estou em dívida

o meu corpo não se esquece

de me lembrar

 

não administro bem os hábitos

quanto mais

as regulares tristezas

quando pegam fogo

 

em fundo

raízes por fora

viradas para cima

a pedir luz

como também pede o corpo

não se esquece

 

mesmo na sombra

há extraordinariamente cores

a pedir luz

no meio

do negativo

 

os cigarros

serão lâmpadas

sóis

servem

por agora

 

depois é preciso mais

 

mais maneiras

de não sermos

livres frutos desimpedidos

 

tanta sombra

 

a minha fototaxia fode-me

 

mas dizia eu

 

nos transportes

teremos locais imaginados

palavras polaroids

muito escuras

quem não as tem

na esperança de morrer menos

reservar algumas estações

românticas como termómetros

quando o mercúrio deixou

de ligar à sua vocação

de Sísifo

dos pequenos intervalos numéricos

deixou-se ficar ali

ou escapou

para ir morrer longe

ou perder-se da memória

 

ou nela

não há diferença

 

já somos restos

 

se fugirmos a todas as dívidas

fica o quê

 

o autocarro não chega

e o sol põe-se

 

 Miguel Cardoso


Miguel Cardoso vive em Lisboa. Ensina, traduz. Escreve em longos problemas respiratórios. À noite lê Albas e Ruy Belo. A poesia é para esperar por manhãs seguintes. Às terças e sábados levanta-se. Vai à Feira da Ladra.  Ler também aqui.

Adio a hora de me deitar e já hibernas

Maria S. Mendes

 

Adio a hora de me deitar e já hibernas

antecipo o tempo de moldares ao meu ventre os teus joelhos

assentares nas minhas coxas os teus pequenos pés cálidos

pousares-me nas faces as tuas mãos pintadas pela Josefa Ayala

expirares sobre a minha boca o teu hálito sem molares

suspirar-te a adoração que te tenho

sorver-te o odor essencial do paraíso palpável da nuca,

umbigo universal de tudo.

 

Prolongo a saudade para aumentá-la

num arranque acorrentado para a alvorada.

Penso:

o teu pai sofre mais porque nem o gato ronrona quando não estás.

Lembro-me então de que não tenho gatos

e enfrento a repulsa ao sono que nos repara separadas

em terras com geografia elástica

deitadas sobre o mesmo lençol.

 

Acordo com o teu corpo em febre ao meu lado.

Sinto-me uma aprendiza de bruxa

a pegar fogo às labaredas na tentativa de extingui-las

enquanto inundo o quarto num afã de recém-dona de casa.

 

Acordas.

Ofereço-te goles de água,

pergunto-te “Queres abraçar-me?”,

respondes “Não posso tocar em nada

que esteja quente”. Escapa-se-me

o riso clandestino da madrugada.

 

Encaracolas-te ao meu braço

na proporção de um bonobo numa aroeira

como quando me enrolava à minha mãe

- só não sou grisalha.

 

Gostaria de morrer como as oliveiras

que apenas enrugam,

albergar-te sempre.

Tu deitada na sombra argêntea, protegida da canícula.

Tu deitada na sombra argêntea, abrigada da lua fria.

Tu a jogar à macaca com piões a rodopiar por ti acima.

Tu grávida, cuidando de todas as coisas vivas

a brotarem dos teus calcanhares e pulsos,

a tua boca a babar hera como a Primavera renascentista

vestida de cravos rosas centáureas

pés de seda pisando um impossível musgo

inconsciente de seres deusa como só uma.

 

Catarina Santiago Costa


Catarina Santiago Costa nasceu em Lisboa, em 1975. Frequentou o curso de Comunicação Social na Universidade da Beira Interior (Covilhã) e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa). Ambos os seus livros, Estufa (2015) e Tártaro (2016), foram publicados pela editora Douda Correria. Participou em edições da Enfermaria 6, Diversos Afins (Brasil), Flanzine e Tlön. A poesia é a lente através da qual vê tudo.

nunca ninguém: tem

Maria S. Mendes

 

nunca ninguém: tem

educação na infância:

uma nuvem não vem

com tradução: tempo

espaçado de frase feita

em branco: entretanto

em palavras-turquesa

céus amplos: digitinta

não cabe: impossível

meteorologia alguma


 

 

sobram fachadas: vizinhas

conversas vazias do bairro

de nada de pedra esfarelada:

tanto transparecem na tarde

alguma falta de interior

pose de ruína

despreocupada:

como caem os muros

às mãos do homem

demolidor:

 

telhados abrem

nossa falência

e sobram fechadas:

portadas honestas

uma osga

cimento

sem companhia

 

Ricardo Tiago Moura


Ricardo Tiago Moura nasceu em Coimbra, Junho de 1978. Publicou os livros Um gato para dois (Hariemuj, 2013), Epístolas a D. (não edições, 2013), 1 gato para 2 (não edições, 2015) e pequena indústria (Tea for One, 2016). Publicou também o livro-objecto Controlo de qualidade (ed. de autor, 2017). O seu livro Espaço aéreo (Arqueria, 2014) foi publicado no Brasil, mais tarde traduzido para Espanhol e Inglês e publicado no Peru (Amotape Libros, 2015) e Reino Unido (Carnaval Press, 2017). Tem publicado dispersamente poemas em revistas e antologias. Dedica-se também à colagem. Vive em Køge, Dinamarca. 

Trailer

Maria S. Mendes

 

TRAILER

 

 

o filme começa com um happy begin

 

será um flash-back o que se passa em mim?

e depois o tempo presente não sei se volta

 

cama grande ou divã?

acordar a dois

e nasce uma estrela

 

o primeiro adeus

a primeira clínica

a segunda clínica

shrinks, screens e boeings

 

de cá para lá

de lá para cá

sem passar por ti

 

un homme et une femme

bádábádábá

um casamento em paris, texas

 

a valentine nem queria acreditar

e tinha cárrádásss de raison

 

só nos ficaram as mil luzes de manhattan

dream a little dream of me

 

como era mesmo? aquele primeiro sonho

ah já me lembro

“eu sou uma flor que não envelhece”

e eu beijava-te

 

o primeiro beijo

 

FINE DEL PRIMO TEMPO

 

(saudade de viagens em itália

de filmes com intervalo

para fumar um cigarrinho)

 

SECONDO TEMPO

 

o primeiro restaurante

o primeiro disco

o primeiro gravador de chamadas

o primeiro emprego

 

é isto o cinema?

 

a bofetada de hiroshima

e se fôssemos ao egipto?

(tenho saudades da juleen compton)

lua cheia no yucatán

ela só dançou um verão

eu só bebo périer

le génie ou alors rien

não podemos viver juntos

nem separados

terna é a noite

dois apartamentos não nos bastam

é só uma lua de papel

the last moon of yucatan

the lost moon of yucatan

mas se acreditares em mim

este filme não acaba

toda a gente diz que te amo

à bâtons rompus

on parle on parle

falamos sem parar

mas não é só o que sabemos fazer

 

será que tudo não é senão uma colagem?

tu parles!

will you still love me when I’m eighty-four?

a última clínica

a última tarte aux myrtilles

 

- Lembras-te daquele filme?

- Qual?

 

(1.7.17)

 

 

Ramiro S. Osório

Formatei-me muito mais do que queria

Maria S. Mendes

 

Formatei-me muito mais do que queria

julguei resistir mas o crânio cedia

como uma bola de borracha ao sol.

Percebi isso ontem

no reflexo de uma janela:

a minha cabeça estava quase igual às outras todas.


 

 

 

Não, não sinto um grama

de poesia em todo o corpo,

e pesam-me as inevitabilidades mesquinhas.

O prazo do ketchup expirou há pouco

e todos me vão recriminar,

já sei, por eu não

reparar nesses números tão pequenos

que apesar do esforço me escapam

e fogem num resquício de distração distraída.

Estranha, a evolução da vida.

Há que continuar a olhar

a lata, o frasco, a casa.

Toda a mercearia me engoliu há muito.

E são e estão, tanto que não saberia.

Os filhos matam. Maridos também. Famílias assassinas a matar mulheres todos os dias.

 

Poesia não, mercearia.

Leonor Sá

 


Leonor Sá é conservadora de museu e mentora de projetos de proteção do património cultural. Doutorada em Estudos de Cultura pela Universidade Católica Portuguesa, com uma tese sobre os primórdios da fotografia judiciária, fez em tempos um mestrado cuja dissertação incidia sobre Kafka e a Utopia. Resultado: teve um percurso profissional kafkiano, mas nunca deixou a utopia - nem a poesia (senão morria).