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Reyerta

Poemas de antes

Reyerta

Nuno Amado

Reyerta, Federico García Lorca

 

En la mitad del barranco

las navajas de Albacete,

bellas de sangre contraria,

relucen como los peces.

Una dura luz de naipe

recorta en el agrio verde,

caballos enfurecidos

y perfiles de jinetes.

En la copa de un olivo

lloran dos viejas mujeres.

El toro de la reyerta

se sube por las paredes.

Ángeles negros traían

pañuelos y agua de nieve.

Ángeles con grandes alas

de navajas de Albacete.

Juan Antonio el de Montilla

rueda muerto la pendiente,

su corpo lleno de lírios

y una granada en las sienes.

Ahora monta cruz de fuego,

carretera de la muerte.

*

El juez, com guardia civil,

por los olivales viene.

Sangre resbalada gime

muda canción de serpiente.

Señores guardias civiles:

aquí pasó lo de siempre.

Han muerto cuatro romanos

Y cinco cartagineses.

*

La tarde loca de higeras

y de rumores calientes,

cae desmayada en los muslos

heridos de los jinetes.

Y ángeles negros volaban

por el aire del poniente.

Ángeles de largas trenzas

y corazones de aceite. 

Rixa, tradução de José Bento

No meio desse barranco

as navalhas de Albacete,

belas de sangue contrário

têm um brilho de peixes.

Uma dura luz de cartas

recorta no verde agreste

cavalos enfurecidos

entre perfis de ginetes.

Na copa de uma oliveira

estão a chorar duas velhas.

Enquanto o touro da rixa

se eleva pelas paredes.

Uns anjos negros traziam

lenços e água de neve.

Anjos com asas enormes

de navalhas de Albacete.

Juan Antonio de Montilla

rola morto na ladeira,

o corpo cheio de lírios

e uma romã na testa.

Cavalga uma cruz de fogo

que é uma estrada de morte.

*

O juiz e a guarda civil

já pelos olivais chegam.

Sangue resvalado geme

muda canção de serpente.

Senhores guardas civis:

Tudo aqui foi como sempre.

Mataram quatro romanos

e cinco cartagineses.

*

Tarde louca de figueiras

e de ruídos ardentes

cai desmaiada nas coxas

feridas dos cavaleiros.

E anjos negros voavam

pela brisa do poente.

Anjos de tranças compridas

e de corações de azeite. 

Federico García Lorca, “Reyerta”, Antologia Poética, selecção, tradução e notas de José Bento.  Lisboa: Relógio d’Água, 1993.

Este poema não devia ser esquecido porque, para além da admirável construção imagética que o caracteriza, se debruça de uma forma peculiar sobre uma das motivações principais para a existência de violência entre grupos de seres humanos: uma espécie de hábito mental que classifica o outro através da sua inserção em categorias pré-existentes, negando-lhe a sua individualidade. Ao pertencer a uma determinada categoria, o indivíduo partilha obrigatoriamente com os seus outros companheiros as mesmas qualidades e os mesmos defeitos. Pensamentos como “todos os judeus são avarentos”, “todos os irlandeses são bêbados” ou “todos os políticos são corruptos” são exemplos do lado negro deste hábito mental que tem trazido tão bons resultados à história da Humanidade.

O poema descreve a cena posterior a uma rixa ocorrida num olival entre duas facções distintas. O leitor chega ao poema ao mesmo tempo que as forças da Lei, restando-lhe apenas fazer perguntas sobre o que terá acontecido. A sua tarefa, tal como a do juiz, é dificultada por uma falta de clareza na descrição do que acabou de acontecer. O trabalho que consiste em decifrar as metáforas usadas pelo poeta parece assemelhar-se ao das autoridades, que, em vez de ouvirem confissões ou testemunhos esclarecedores, se deparam com palavras sussurradas, isto é, com uma “muda canción de serpiente”, assim como com enunciados tão enigmáticos quanto este: “Aquí pasó lo de siempre. / Han muerto cuatro romanos / y cinco cartagineses”. Tendo em conta a impossibilidade histórica da coexistência de forças de autoridade espanholas com romanos ou cartagineses, deve-se tentar perceber quem, para além de Juan Antonio de Montilla, foram os outros intervenientes na refrega e por que é que são qualificados desta forma curiosa.

Se considerarmos as armas do crime, as famosas navalhas de Albacete, percebemos que a luta ter-se-á desenrolado entre dois grupos daquela região espanhola. Estes rivais, contudo, não são apenas conterrâneos. Atendendo ao facto de o poema se inserir no Romancero Gitano, é altamente provável que os participantes na rixa sejam ciganos. Ora, partilhando os adversários a mesma origem e a mesma etnia, esta poderia ser descrita como uma luta fratricida, algo que jamais foi dito acerca das guerras travadas entre romanos e cartagineses, dadas as diferenças culturais existentes entre os dois povos. Todavia, é precisamente esse erro descritivo que Lorca quer corrigir, desde o início do poema, quando se refere ao sangue presente nas navalhas como “sangre contraria”. Estes ciganos de Albacete são, assim, tão parecidos e diferentes entre si como o são relativamente a romanos e a cartagineses. Por mais que se considerem diferentes e se comportem como oponentes, une-os a todos uma violência que tem origem na crença de que os outros, porque pertencem a uma família, a uma etnia ou a uma cultura diferente da deles, partilham características biológicas e morais, intrínsecas e invariáveis, que os tornam, inevitavelmente, seus adversários.

Ao ocultar os motivos que originaram aquela rixa, Lorca sugere que aquele sangue derramado se deve simplesmente à rivalidade existente entre os dois grupos. O distúrbio original parece ser, então, a animosidade sentida por um grupo relativamente a outro grupo. Perante este motivo primordial, todas as outras causas se apresentam como irrisórias. Vingança, expansão territorial ou defesa de valores culturais parecem ser apenas desculpas para legitimar o uso de violência sobre aqueles que nalgum aspecto se diferenciam de outros. É por isso que esta rixa é descrita como sendo apenas mais uma jogada num jogo que se perpetua naquela região desde a Antiguidade e do qual só os anjos negros, que se confundem com as navalhas, saem vitoriosos. Esta ideia de jogo é, aliás, reforçada por vários vocábulos (“naipe”, “caballos”, “jinetes”, “copa” e “corazones”) que remetem directamente para o campo semântico do baralho de cartas espanhol, e qualquer pessoa familiarizada com a representação simbólica do lírio desconfia de que os “lírios” do cadáver remetem para o símbolo característico do naipe de espadas.

Conta-se que, a partir de um certo momento, o romano Catão, o Velho, terminava todos os seus discursos no senado dizendo “Considero ainda que Cartago deve ser destruída”. Não seria surpreendente se houvesse um ou mais Catões entre os mortos estendidos neste olival.

 

Jorge Almeida


Jorge Almeida é licenciado em Estudos Portugueses e doutorando no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). Escreve crítica literária no Observador. Sabe de cor um poema de Cesário Verde e versos avulso de outros poetas, mesmo não se tendo esforçado para que isso acontecesse.