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Poemas de agora

Alba

Maria S. Mendes

 

Alba

 

Climbing in the mist I came to a terrace wall

and saw above it a small field of broad beans in flower

their white fragrance was flowing through the first light

of morning there a little way up the mountain

where I had made my way through the olive groves

and under the blossoming boughs of the almonds

above the old hut of the charcoal burner

where suddenly the scent of the bean flowers found me

and as I took the next step I heard

the creak of the harness and the mule’s shod hooves

striking stones in the furrow and then the low voice

of the man talking softly praising the mule

as he walked behind through the cloud in his white shirt

along the row and between his own words

he was singing under his breath a few phrases

at a time of the same song singing it

to his mule it seemed as I listened

watching their breaths and not understanding a word

 

W. S. Merwin, “Alba”, The New Yorker, 2008.

 

 

 

Gosto deste poema porque aparentemente nada se passa nele. O que primeiro me atraiu foi a nomeação hábil da flora — como alguém diz, um dos “truques” que os escritores usam —, que seduz e causa admiração porque revela o conhecimento especializado de uma parte do mundo. Através dessa nomeação conseguimos perceber a localização geográfica e temporal do momento que o poema descreve: “Alba”, o título, não se reporta apenas à aurora (que de resto fica explícito no terceiro e quarto versos), nem é somente indicativo da névoa característica desse período do dia, especialmente em altitudes elevadas, como é o caso; é ainda o nome de uma comuna na região de Piemonte, no norte de Itália (o que descobri neste artigo acintoso). À luz desta informação, as favas, os olivais, a cabana do carvoeiro, as amendoeiras e até o aparecimento do homem com a mula adquirem um sentido óbvio e quase banal. O facto de as favas e as amendoeiras estarem em flor dá-nos a referência temporal: as amendoeiras só florescem em finais de Janeiro ou inícios de Fevereiro; em relação às favas, é mais complicado e depende de quando foram plantadas — se o tiverem sido no tempo mais favorável, em Outubro/Novembro, poderão ser colhidas em Maio, mas não consegui saber se seria possível estarem em flor na mesma altura das amendoeiras (o poema dá-nos a ilusão de que adquirimos algum do conhecimento especializado que o poeta parece exibir, mas perante estas incertezas sabemos que não).

Há mais truques neste poema: a ausência de pontuação, frases que vertem de um verso para outro e por isso adquirem significados ambíguos, dar cor a cheiros (o cheiro branco das favas em flor), a atribuição de agência a coisas que não o têm (foi o cheiro das favas em flor que encontrou o poeta, não o contrário) e, um dos mais importantes, apresentar-se como uma descrição factual — além da nomeação da flora, note-se a precisão da descrição dos sons dos cascos da mula, da cor da camisa do homem, do bafo que ambos exalam. O “there” do quarto verso surge quase dissimulado, mas contribui para nos garantir que este passeio se deu, “lá”, ou “ali”, como se o poeta estivesse a apontar para um local físico e a contar o que lá aconteceu.

No final, ficamos com a imagem idílica de uma manhã rural, que dá a impressão de existir por si mesma em virtude dos elementos naturais, vulgares, que a compõem, como se fosse já um poema só à espera de ser escrito, e que Merwin apanhou. Contudo, aquele “there” não funciona apenas enquanto indicação factual. Cria também um distanciamento entre o supostamente vivido e o escrito, e assegura, com os truques referidos, que o momento é uma criação porque o poema é uma criação. Não há poemas à espera de serem apanhados, e talvez por isso os versos da canção que o homem repete ritmicamente à mula sejam incompreensíveis para o poeta. Poemas são feitos, com mais ou menos truques, mesmo que nos dêem a impressão de que nada, ou pouco, se passa — esse é o truque maior.

 

Helena Carneiro fez o mestrado no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). É redactora e assistente editorial na Imprensa da Universidade de Lisboa. Dirige a secção de recensões da revista online Forma de Vida, para a qual também faz entrevistas. Tem tido quem lhe explique poesia e gosta muito de Philip Larkin, que na sua lápide preferiu ser denominado “escritor”.

5. vejo / a pequena suja

Maria S. Mendes

 

5.

vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães

não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante

alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos

gostava também
de ir brincar com ela

mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente

já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos

já nenhum poeta o faz


Alberto Pimenta, "5.", De nadaBoca, Lisboa, 2012.

Gosto deste poema porque é um poema de Alberto Pimenta. Acredito que Alberto Pimenta é um dos maiores poetas vivos, incluindo neste conjunto aqueles que estão mortos-apesar-de-estarem-vivos e os que estão vivos-apesar-de-estarem-mortos. A poesia consegue estar sempre viva e sempre morta, em simultâneo. É um dos seus paradoxos. Por esta razão, um bom poeta vivo tem de estar sempre um bocadinho morto e na companhia dos que estão vivos-apesar-de-estarem-mortos. Aplica-se o mesmíssimo princípio a um bom poeta morto, garantindo assim a igualdade de oportunidades no acesso à lista canónica.

Este poema começa com uma imagem que, fazendo ressoar um eco da galáxia pessoana (aqui despojado de chocolates e de metafísica), acentua um certo tom de anacronismo. É que hoje, nestes dias higienizados e uniformizados, seremos facilmente levados a afirmar que não existem já pequenas sujas. Ou, para ser correto, quase não existem. Aparecem, de vez em quando, por exotismo ou como apêndices visuais de catástrofes humanitárias. De resto, à nossa volta, todas as meninas são limpas e lindas, sobretudo quando estão a adquirir fé na catequese ou a vender produtos na televisão.

Esta particular menina suja brinca na rua (como se fosse na cama, talvez) com os "cagalhões dos cães". Os “cagalhões”, tal como outros dejetos mais ou menos meritórios, andam ausentes do discurso poético, razão pela qual devemos celebrar a sua aparição neste poema, ainda que alguém possa querer entendê-los como metáfora. As metáforas não têm cheiro e não consta que sequem ao sol, o que as torna bastante mais higiénicas e perenes do que os “cagalhões” (apesar de também morrerem, como garante metaforicamente um ilustre filósofo). Por outro lado, os “cagalhões” são muito mais antigos do que as metáforas, o que lhes confere um prestígio ancestral, tornando-os merecedores do mesmo tipo de respeitinho – coisa sempre muito bonita - que prestamos a antepassados e a museus de arte antiga. Para reforçar a dignidade dos “cagalhões”, convém ainda lembrar que eles são, neste poema, um elemento constitutivo de uma poderosa imagem poética.

Esta imagem da menina que, pelo mérito das suas mãos, reconfigura o caos torna-se mote de um lamento elegíaco por um tempo mítico em que poetas e meninas sujas brincavam com coisas que se encontram no chão, ainda que essas coisas não se enquadrem na categoria do “sublime” e sejam meramente “interessantes” ("como tudo", aliás). Aqui conflui uma longa tradição que poderá ter iniciado a sua via (sacra) de extinção, apesar dos continuados esforços de alguns poetas, entre os quais se destaca Alberto Pimenta. Não se trata apenas de uma consequência do declínio da poesia satírica, que irrompe necessariamente da vida comum e do real concreto e observável, mas de uma deslocação mais profunda do foco e do(s) assunto(s) poéticos. Sobre isso, está tudo dito, ainda que mais houvesse a dizer.  

O poema nasce do olhar: “vejo”. E é pelo olhar que interpela o leitor, como se quisesse relembrar uma dimensão estranhamente perdida. “Já nenhum poeta o faz”, diz ele. Não mais, treslemos nós, não mais. Mas se a melancolia da aparente desistência nos levar a temer pela extinção iminente desta poesia que olha para o lixo e para a rua, que se ocupa dos seres que respiram e que cospem, viremos as páginas do livro e logo constataremos que ainda não foi desta.

Rui Lopes


Rui Lopes é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa) e Mestre em Teoria da Literatura (Fac. Letras da Universidade de Lisboa). Tem desenvolvido a sua atividade profissional como professor e tradutor. Em 2017, publicou o livro Aqui há gato!, com Renata Bueno, pela Orfeu Mini. Quando não está a fazer alguma das coisas já mencionadas, geralmente dedica-se às artes performativas, eliminando assim qualquer vestígio de tempo livre.

Nada Falta

Maria S. Mendes

 

NADA FALTA

 

Ao cair da tarde,

passa lá fora

a melancólica,

antiquíssima flauta

do amolador.

 

Vai-se afastando

e deixando atrás de si,

como uma cascata,

a toada

magoada e urgente

da noite que vem

e promete ser

varrida de água

e de vento,

fatal para vagabundos

e para espíritos aflitos

e afligidos.

 

Mas

entre os múltiplos golpes

executados por aí

com um cutelo de dois gumes

de fabrico euro-alemão,

esta tormenta,

no ritmo da flauta,

anuncia sobretudo a queixa

de mais um trabalho

em liberdade e em gosto

prestes a morrer.

 

Parece

que mais ninguém a ouve,

e,

pelo silêncio que fica,

parece até

que já não há ninguém vivo na rua.

Nem os cães…

Estarão

a ver

as inundações

na América

 

— Os cães também?

 

Claro, nem ladram.

 

A televisão

inunda-lhes a casa lá longe

e eles gostam.

Também lhes afia as facas

que trazem na cabeça

e todos gostam.

Não precisam de amolador.

Não precisam de mais nada.

 

Alberto Pimenta, "Nada Falta", Nove fabulo, o mea vox/De novo falo, a meia voz. Lisboa: Pianola, 2016.

 

Gosto deste poema porque fala da flauta do amolador — e, neste Outono, teima em não chover. No português das telenovelas brasileiras com que cresci, amolador podia designar aquele que arrelia ou aborrece: “Não enche o saco, não amola!” Um leitor de poesia não é, nesta acepção, um amolador, desde que não pretenda explicar o sentido do poema. Porque, diz o poeta, um poema não quer dizer: ele simplesmente diz. Comentar um poema, nos termos em que o faço, significa amolá-lo, molestá-lo: cansar a sua beleza, como também diz o povo irmão. Mas o leitor pode talvez ser um amolador na acepção que o poema invoca: alguém que afia o gume do poema no esmeril da sua dor, ou que conserta imaginosamente a quebra dos versos, preenchendo os espaços em branco.

Descrever alguém como amolador não significa aproximá-lo de nós, mas aumentar a distância que nos separa dele. O amolador sempre foi uma figura outonal, não porque viesse apenas com as estações frias, mas porque se dizia que a música da sua flauta era já sinal de chuva. Além de amolar facas e tesouras, consertava guarda-chuvas. No poema, o amolador não é alguém que chega e se faz ouvir, mas aquele que se afasta — “ao cair da tarde”, esclarece o verso inicial. A sua música vem de longe, de um passado ainda mais remoto do que possamos supor, talvez de um fundo mitopoético — a sua flauta é “antiquíssima” —, ao qual parece agora regressar, por fim. A flauta não faz já alarde de um préstimo: “anuncia sobretudo a queixa/ de mais um trabalho/ em liberdade e em gosto/ prestes a morrer”. O que deixa atrás de si é um pranto: “uma toada magoada e urgente” que flui “como uma cascata”. Escorre por ruas desertas, “parece até/ que já não há ninguém vivo na rua”. Ao contrário do flautista de Hamelin, este tocador não atrai qualquer criatura: nem crianças, nem ratos sequer. Tudo isto faz lembrar o canto do vendedor de peixe açoriano que Ernst Jünger descreve no final de O Coração Aventuroso: calcorreando ruelas estreitas e adormecidas — também aqui “ninguém saía de casa e nenhuma janela se abria” —, o vendedor lançava um pregão exuberante, que se convertia logo, em voz baixa, numa expressão desesperada ou numa praga de cansaço. No poema, o magnífico apelo da flauta do amolador soa como um lamento.

Nenhuma cheia, contudo, aniquilou a população: as gentes e até os cães estão fechados em casa, hipnotizados, talvez mesmo medusificados. A televisão dá-lhes outra música, que também anuncia chuva — as inundações na América, onde tudo é em grande e qualquer cheia adquire imediatamente proporções bíblicas, como, no directo do telejornal, gosta de apregoar o jornalista que nunca leu o Êxodo ou o Apocalipse. A catástrofe, todavia, não são “as inundações na América” — essa terra onde Disaster never rests!, como advertiam, em tempos não muito distantes, cartazes da Cruz Vermelha americana —, mas a enxurrada televisiva. É decerto uma inundação de água tépida, como agrada à rã que se deixa cozer alegremente em lume brando: “A televisão/ inunda-lhes a casa lá longe/ e eles gostam”. Amusing ourselves to death. A televisão é também o grande amolador: deixa o espírito embotado (isto é, sem gume), mas “afia as facas/ que trazem dentro da cabeça/ e todos gostam”. Que facas são essas? (Como se lê noutro poema deste livro: “Não vou responder/ não me apetece”.)

Daqui se infere que a tonalidade melancólica do poema não exclui uma disposição tensa. Pelo contrário: em alguns momentos, a diatribe torce o pescoço à elegia. Na terceira estrofe, o poema visa “um cutelo de dois gumes de fabrico euro-alemão”, manejado certamente por destro açougueiro, já que tem distribuído “múltiplos golpes” por aí. E um riso escarninho, que se deve sobretudo à ingerência de uma voz irrisória que o poeta há muito não ouvia, assoma em vários poemas do livro, insinuando-se pontualmente aqui: “— Os cães também?” Tem-se dito que esta reversibilidade é típica da poesia de Alberto Pimenta: o baixo que se eleva, o sublime que devém grotesco, o elegíaco que se revela ácido, o pranto que mostra incisivo dente. Talvez isto já nos fosse dado pelo título do poema, uma declaração aparentemente reconfortante: “Nada falta”. Esta expressão de plenitude designa afinal uma extinção — e talvez uma liquidação total, como anunciam as montras no fim da grande época dos saldos.

Pedro Sobrado


Pedro Sobrado. Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos de Teatro, prepara uma tese de doutoramento sobre Gil Vicente. É professor de literatura dramática na Universidade Lusófona do Porto. Participou como dramaturgista em espectáculos teatrais de Nuno Carinhas e de Ricardo Pais. Trabalha no departamento de Edições do Teatro Nacional São João, onde assegura a coordenação editorial de livros e outras publicações. É autor do blogue Mosca Fosforescente.

Canção da Alma Caiada

Maria S. Mendes

 

Canção da Alma Caiada

 

Aprendi desde criança

que é melhor me calar

e dançar conforme a dança

do que jamais ousar

 

mas às vezes pressinto

que não me enquadro na lei:

minto sobre o que sinto

e esqueço tudo o que sei.

 

Só comigo ouso lutar:

sem me poder vencer,

tento afogar no mar

o fogo em que quero arder.

 

De dia caio minh’alma.

Só à noite caio em mim:

por isso me falta calma

e vivo inquieto assim.

 

António Cícero, “Canção da Alma Caiada”, Guardar: Poemas Escolhidos. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002.

 

Gosto deste poema porque a sua simplicidade musical não obsta à introspecção psicológica. Na longa-metragem Shadowlands (1993) é atribuída ao escritor C.S. Lewis a frase “we read to know we’re not alone”, assim garantindo que até nos momentos mais desacompanhados nos consolamos em descobrir, numa ou noutra sequência de palavras, uma versão mais articulada daquilo que julgamos sentir.

Embora datável da década de 1970, li o poema “Canção da Alma Caiada”, do poeta brasileiro António Cícero, muito mais tarde. Duas coisas me chamaram a atenção: a estrofe (quadra) e a rima (alternada) correspondiam às descrições mais antigas e convencionais daquilo que reconhecia como poesia. Por outro lado, e tal como o fogo erótico de evocação camoniana (“tento afogar no mar/ o fogo em que quero arder”), o uso das palavras homónimas “caio” (verbo caiar) e “caio” (verbo cair) não só pareciam sugerir um “uso literário da linguagem” como iam ao encontro do vocabulário de uma poetisa que então me interessava particularmente: Sophia de Mello Breyner. Em “Arte Poética I” (Geografia, 1967), Sophia escreve que “Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado”, mas no poema “Porque” (Mar Novo, 1958) a associação é claramente negativa e os outros “são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão”. Aqui, “caiados” tem o sentido de ocultação, tal como no poema de António Cícero.

Também a musicalidade do poema parecia confirmada pelo próprio título. Na verdade, sob o nome “Alma Caiada”, o poema foi musicado por Marina Lima, irmã do poeta, e gravado por Zizi Possi, que o incluiu no álbum Pedaço de Mim (1979). A canção que dá nome ao álbum, da autoria de Chico Buarque, era para mim totalmente desconhecida e inclui os extraordinários versos “A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu” que, segundo algumas leituras, é uma alusão à violência política da ditadura militar brasileira.

Assim, este poema parece ilustrar três coisas que, por vezes, acontecem quando lemos poesia: descobrimos coisas que desconhecíamos; estabelecemos relações de parentesco entre poemas e/ou poetas; e, finalmente, encontramos pessoas que dizem, de forma mais eloquente, coisas que gostaríamos de ter dito.

António J. Ramalho


António J. Ramalho é arquivista e desconfia de afirmações genéricas, porém enfáticas, do tipo “gosto muito de poesia”. 

 

There is a button on the remote called FAV

Sara Carvalho

There is a button on the remote control called FAV. You can program your favorite channels. Don’t like the world you live in, choose one closer to the world you live in. I choose the independent film channel and HBO. Neither have news programs as far as I can tell. This is what is great about America—anyone can make these kinds of choices. Instead of the news, HBO has The Sopranos

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A última morada

Sara Carvalho

 

A última morada

 

Quem passa o portão de ferro

do lado esquerdo estão os teus pais

e alguns irmãos  No talhão de

cima a minha avó  e tu

numa sepultura simples

Aqui e ali por entre os anjos

de mármore  jazem alguns

vizinhos  um jovem soldado

que morreu na guerra  uma criança

que não deveria estar ali  Lentamente

vão-se restabelecendo cumplicidades

num mundo onde as palavras

(e a vida) são desnecessárias

 

Jorge Sousa Braga, “A última morada”, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2012.

 

 

Gosto deste poema pela ironia surpreendente do que surge entre parênteses, na última linha. A surpresa é subtil e, numa primeira leitura, pode fazer sorrir: num mundo de mortos, a vida é desnecessária.

Comecei pelo fim, mas agrada-me, logo nos primeiros versos, a imprecisão coloquial com que são dadas indicações sobre a localização de alguém. Se uma determinada localização é sempre relativa, neste poema as indicações estabelecem simultaneamente um mapa de relações genealógicas, também algo impreciso. Temos, assim, numa “sepultura simples”, um “tu”, cujos pais e alguns irmãos (do “tu” ou dos pais deste?) se encontram do lado esquerdo de quem passa o portão de ferro; uma avó de quem escreve (“a minha avó”), que jaz no talhão de cima; alguns vizinhos (do “tu”, de quem escreve, de ambos, ou tão-somente vizinhos de sepultura?); um jovem soldado morto na guerra; uma criança “que não deveria estar ali”, pois não há sítio mais absurdo onde uma criança possa estar do que num cemitério. “Cemitério” é, aliás, palavra que não figura no poema, tal como, no mundo particular que nele se evoca, as palavras e a vida são desnecessárias. Há, no entanto, palavras que pertencem ao campo lexical de “cemitério”, como “talhão”, “sepultura”, ou “anjos de mármore” – e, naturalmente, “última morada”.

Gosto deste poema por aquilo que nele julgo ler sobre a vida (e a literatura). Tal como, na literatura, metáforas podem nascer de metonímias, na vida, relações de cumplicidade decorrem muitas vezes da contiguidade. Interrogo-me, ao escrever isto, se há alguma espécie de cumplicidade que não nasça da proximidade. No poema, as cumplicidades vão sendo restabelecidas “lentamente”, porque, no mundo particular que aí se evoca, também a pressa é desnecessária. Agrada-me a descrição de uma última morada onde, passando-se certo portão de ferro, e na ausência de palavras, pode haver lugar e tempo para relações de cumplicidade. Penso ainda, ao ler o poema, na ideia de que a vida é algo que está entre parênteses, interposto entre uma coisa e outra coisa. Gosto, por fim, da sugestão de uma vida além da vida, onde, por assim dizer, não se está só. 

Ana Cláudia Santos


Ana Cláudia Santos trabalha na Imprensa da Universidade de Lisboa, e faz outras coisas nos tempos livres. Doutorou-se e escreveu sobre Giambattista Vico, cuja autobiografia traduziu. Nunca conseguiu destruir os poemas que escreveu em criança, e continua a ter um fraco pela rima.