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Nada Falta

Poemas de agora

Nada Falta

Maria S. Mendes

 

NADA FALTA

 

Ao cair da tarde,

passa lá fora

a melancólica,

antiquíssima flauta

do amolador.

 

Vai-se afastando

e deixando atrás de si,

como uma cascata,

a toada

magoada e urgente

da noite que vem

e promete ser

varrida de água

e de vento,

fatal para vagabundos

e para espíritos aflitos

e afligidos.

 

Mas

entre os múltiplos golpes

executados por aí

com um cutelo de dois gumes

de fabrico euro-alemão,

esta tormenta,

no ritmo da flauta,

anuncia sobretudo a queixa

de mais um trabalho

em liberdade e em gosto

prestes a morrer.

 

Parece

que mais ninguém a ouve,

e,

pelo silêncio que fica,

parece até

que já não há ninguém vivo na rua.

Nem os cães…

Estarão

a ver

as inundações

na América

 

— Os cães também?

 

Claro, nem ladram.

 

A televisão

inunda-lhes a casa lá longe

e eles gostam.

Também lhes afia as facas

que trazem na cabeça

e todos gostam.

Não precisam de amolador.

Não precisam de mais nada.

 

Alberto Pimenta, "Nada Falta", Nove fabulo, o mea vox/De novo falo, a meia voz. Lisboa: Pianola, 2016.

 

Gosto deste poema porque fala da flauta do amolador — e, neste Outono, teima em não chover. No português das telenovelas brasileiras com que cresci, amolador podia designar aquele que arrelia ou aborrece: “Não enche o saco, não amola!” Um leitor de poesia não é, nesta acepção, um amolador, desde que não pretenda explicar o sentido do poema. Porque, diz o poeta, um poema não quer dizer: ele simplesmente diz. Comentar um poema, nos termos em que o faço, significa amolá-lo, molestá-lo: cansar a sua beleza, como também diz o povo irmão. Mas o leitor pode talvez ser um amolador na acepção que o poema invoca: alguém que afia o gume do poema no esmeril da sua dor, ou que conserta imaginosamente a quebra dos versos, preenchendo os espaços em branco.

Descrever alguém como amolador não significa aproximá-lo de nós, mas aumentar a distância que nos separa dele. O amolador sempre foi uma figura outonal, não porque viesse apenas com as estações frias, mas porque se dizia que a música da sua flauta era já sinal de chuva. Além de amolar facas e tesouras, consertava guarda-chuvas. No poema, o amolador não é alguém que chega e se faz ouvir, mas aquele que se afasta — “ao cair da tarde”, esclarece o verso inicial. A sua música vem de longe, de um passado ainda mais remoto do que possamos supor, talvez de um fundo mitopoético — a sua flauta é “antiquíssima” —, ao qual parece agora regressar, por fim. A flauta não faz já alarde de um préstimo: “anuncia sobretudo a queixa/ de mais um trabalho/ em liberdade e em gosto/ prestes a morrer”. O que deixa atrás de si é um pranto: “uma toada magoada e urgente” que flui “como uma cascata”. Escorre por ruas desertas, “parece até/ que já não há ninguém vivo na rua”. Ao contrário do flautista de Hamelin, este tocador não atrai qualquer criatura: nem crianças, nem ratos sequer. Tudo isto faz lembrar o canto do vendedor de peixe açoriano que Ernst Jünger descreve no final de O Coração Aventuroso: calcorreando ruelas estreitas e adormecidas — também aqui “ninguém saía de casa e nenhuma janela se abria” —, o vendedor lançava um pregão exuberante, que se convertia logo, em voz baixa, numa expressão desesperada ou numa praga de cansaço. No poema, o magnífico apelo da flauta do amolador soa como um lamento.

Nenhuma cheia, contudo, aniquilou a população: as gentes e até os cães estão fechados em casa, hipnotizados, talvez mesmo medusificados. A televisão dá-lhes outra música, que também anuncia chuva — as inundações na América, onde tudo é em grande e qualquer cheia adquire imediatamente proporções bíblicas, como, no directo do telejornal, gosta de apregoar o jornalista que nunca leu o Êxodo ou o Apocalipse. A catástrofe, todavia, não são “as inundações na América” — essa terra onde Disaster never rests!, como advertiam, em tempos não muito distantes, cartazes da Cruz Vermelha americana —, mas a enxurrada televisiva. É decerto uma inundação de água tépida, como agrada à rã que se deixa cozer alegremente em lume brando: “A televisão/ inunda-lhes a casa lá longe/ e eles gostam”. Amusing ourselves to death. A televisão é também o grande amolador: deixa o espírito embotado (isto é, sem gume), mas “afia as facas/ que trazem dentro da cabeça/ e todos gostam”. Que facas são essas? (Como se lê noutro poema deste livro: “Não vou responder/ não me apetece”.)

Daqui se infere que a tonalidade melancólica do poema não exclui uma disposição tensa. Pelo contrário: em alguns momentos, a diatribe torce o pescoço à elegia. Na terceira estrofe, o poema visa “um cutelo de dois gumes de fabrico euro-alemão”, manejado certamente por destro açougueiro, já que tem distribuído “múltiplos golpes” por aí. E um riso escarninho, que se deve sobretudo à ingerência de uma voz irrisória que o poeta há muito não ouvia, assoma em vários poemas do livro, insinuando-se pontualmente aqui: “— Os cães também?” Tem-se dito que esta reversibilidade é típica da poesia de Alberto Pimenta: o baixo que se eleva, o sublime que devém grotesco, o elegíaco que se revela ácido, o pranto que mostra incisivo dente. Talvez isto já nos fosse dado pelo título do poema, uma declaração aparentemente reconfortante: “Nada falta”. Esta expressão de plenitude designa afinal uma extinção — e talvez uma liquidação total, como anunciam as montras no fim da grande época dos saldos.

Pedro Sobrado


Pedro Sobrado. Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos de Teatro, prepara uma tese de doutoramento sobre Gil Vicente. É professor de literatura dramática na Universidade Lusófona do Porto. Participou como dramaturgista em espectáculos teatrais de Nuno Carinhas e de Ricardo Pais. Trabalha no departamento de Edições do Teatro Nacional São João, onde assegura a coordenação editorial de livros e outras publicações. É autor do blogue Mosca Fosforescente.