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Pedra-de-toque

Sobre o poema “A missão das folhas”, de Ruy Belo

joana meirim

Sobre o poema “A missão das folhas”, de Ruy Belo

Um poema de cada vez: em tempo de crises, restrições e urgências várias, a poesia de Ruy Belo permite liberalmente, favorece e solicita este género de luxo que poderia definir a economia de um “homem de palavra(s)”.

Começo então pelo poema de Ruy Belo, um dos mais pequenos do livro Aquele Grande Rio Eufrates, extraído à sua penúltima secção, “A Cidade”:

 

A MISSÃO DAS FOLHAS

 

Naquela tarde quebrada


contra o meu ouvido atento


eu soube que a missão das folhas

é definir o vento[1]

 

A bem dizer, começando pelo próprio poema e sendo este o poema, poderia também já terminar por aqui. Porque, aparentemente, ou estamos perante uma evidência que não admite mais comentário ou diante de um enigma que é vão pretender decifrar. Mas entendamo-nos: o sentido aqui nem se oferece à transparência nem se oculta na obscuridade; antes se dá a ver no próprio momento em que se esquiva, de tal maneira o óbvio deixa a impressão de só poder significar outra coisa — ou nada. Derrida escreveu algures que um poema corre sempre o risco de não fazer sentido e que sem esse risco ele nada seria — neste caso, o poema de Ruy Belo parece estar tão seguro da sua condição de poema que não teme de modo nenhum deixar-se ler como se fosse só a exibição do enfrentamento desse risco, como se o sentido do poema “A Missão das Folhas” fosse qualquer coisa como: vejam, eu sou um poema!, ou, numa glosa mais estendida: eu sou o exemplo do que um poema tem de fazer para ser um poema. Esta espécie de interpretação metapoética, pelo menos se for formulada nestes termos, nada tem de muito forçado, não só porque qualquer poema é sempre de algum modo metapoema, como ainda e sobretudo porque neste poema a palavra “missão” está em grande destaque e não é possível riscar o sentido da palavra “missão”. Quero dizer: no sentido da palavra “missão” o sentido está sempre envolvido, não é possível riscá-lo de lá e, portanto, o poema “A Missão das Folhas” é sempre, quer se queira quer não, um poema sobre o sentido ou sobre a relação do poema com o sentido.

É exatamente por isso, aliás, que o poema de Ruy Belo corre o risco de que falava Derrida, risco que, com certeza, Ruy Belo conhecia bem sem precisar de o aprender em Derrida. Recordo, a propósito, o que escreveu na “Explicação” anteposta à 2.ª edição de Aquele Grande Rio Eufrates, situando a origem dos poemas desse livro “nos breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto, a pretexto de que, de contrário, a minha alma correria perigo, como se eu tivesse uma coisa como alma, como se correr perigo não fosse talvez a minha mais profunda razão de vida.”[2]

Um dos perigos corridos no poema “A Missão das Folhas” é, no entanto, o de falhar a tentativa de mostrar o que faz um poema para se tornar poema. De facto, a evidência de que é um poema marca-se entre outras coisas pela extensão: quatro versos apenas, uma pequena quadra, uma inscrição breve e lapidar. Mas poderíamos sempre imaginar, tratando-se de Ruy Belo e de Aquele Grande Rio Eufrates, que não se trata de um poema inteiro, mas antes, por exemplo, do fragmento inicial de um poema a que falta a continuação. A hipótese poderia até surgir logo da leitura do primeiro verso ― “Naquela tarde quebrada” ― que sugere um daqueles cenários narrativos e meditativos em que Ruy Belo, nesse livro, se mostrou mestre, caso possa chamar-se mestre a quem mal tem tido o prazer de gerar discípulos dignos desse nome. Naquela hipótese, portanto, o poema teria ficado, como a tarde que evoca, quebrado, quebrado logo no início, ou seja, antes de ter chegado a dizer tudo o que lhe estaria destinado dizer. Se assim fosse, o que aconteceria? O poema falharia a sua missão, seria apenas um poema falhado, ou, pelo contrário, iria ainda mais longe no cumprimento da missão mostrando o seu poder de se cumprir enquanto poema mesmo quando falha logo no início?

Esta pergunta também se poderia fazer doutra maneira. Por exemplo: quando correr perigo é uma “profunda razão de vida” e até, talvez, a mais profunda, qual é a diferença entre falhar e cumprir? Porque a partir do momento em que correr perigo se torna “razão de vida”, transtorna-se o sentido comum da relação entre vida e finalidade. A “missão” é o sentido enquanto finalidade, é o sentido do fim que é preciso realizar, alcançar ou atingir para cumprir a totalidade de um ato orientado por uma intenção ou por uma “razão”. Mas quando correr perigo é essa razão, então quando (ou, se quiserem, em que racionalidade) é que se pode dizer que a ação ou a vida atingiu o seu fim, o seu objetivo, o seu sentido?

É boa altura para lembrar um belo ensaio de Philippe Lacoue-Labarthe sobre Paul Celan, intitulado A Poesia como Experiência, onde o filósofo francês descobre ou redescobre na palavra “experiência”, remetida à sua etimologia, ao étimo experiri, a travessia de um perigo. As diferenças, óbvias, entre Celan e Ruy Belo, como pessoas e como poetas, não bastam para rejeitar a aproximação; bem pelo contrário, é nessas diferenças que ela ganha sentido. Arrisco que “A Missão das Folhas”, enquanto metapoema, se deixa também ler sob o signo dessa ideia de experiência ― e da afirmação do poema como “razão de vida”. Porque é um poema afirmativo, duplamente afirmativo: diz que naquela tarde o poeta soube alguma coisa, que efetivamente a soube, isto é, que ficou a saber o que não sabia, a conhecer o que não conhecia antes daquela tarde; e diz qual o teor desse saber novo, dessa aprendizagem ou dessa revelação, dizendo-o afirmativamente, mesmo categoricamente, a saber: “que a missão das folhas / é definir o vento” (e sublinho a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo ser). Justamente este lado categórico da dupla afirmação é que torna difícil admitir a hipótese de um poema interrompido prematuramente. Há nele esse tom definitivo, resoluto, que aliás poderia fazer pensar que no Ruy Belo do primeiro livro, com toda a sua originalidade, não deixa de haver comunicação com outras vozes, marcas de aprendizagem, por exemplo, no caso de “A Missão das Folhas”, com a voz ou a lição de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não me vou meter por esse atalho, mas se aquilo em que estivermos a pensar for num certo sentido da inteireza ou em certa figuração do sentido como inteireza, então é importante sublinhar de novo o primeiro e o segundo versos deste poema de Ruy Belo e o modo como eles abrem caminho para o sentido justamente através do contrário, isto é, através da “quebra” e do choque: “Naquela tarde quebrada / contra o meu ouvido atento”. A atenção da escuta, que poderia ser comum a Ruy Belo e a Sophia enquanto modo de acolhimento do sentido, está aqui marcada como se fosse uma interrupção e, mais que isso talvez, uma fratura sem reparação possível.

Poeta tardio que seja, Ruy Belo não o será pois, de acordo com este poema, de tardes completas ou perfeitas posteriormente evocadas na tranquilidade ou na nostalgia — mas antes de tardes que, de um verso para outro, subitamente se interrompem e ficam marcadas pela irrupção nelas, ou contra elas, do “ouvido atento” do poeta. Se seguirmos a lógica do poema, todo o acesso a uma finalidade, a uma ciência dos fins, a um conhecimento dos propósitos, se dá poeticamente na dependência de um acontecimento anterior que põe em contacto e em choque entidades tão heterogéneas como uma tarde e um ouvido que imprevisivelmente a vem quebrar. Não é, aliás, secundário que seja o ouvido (e não o olhar) a operar a quebra donde emergem o sentido e o saber: porque essa quebra, justamente, se faz ouvir nas linhas de um poema, isto é, no tecido sonoro dos primeiros heptassílabos do poema “A Missão das Folhas” e no ponto crítico que, entre “quebrada” e “contra”, marca a diferença entre mudança de verso e continuação do sentido. Note-se que sublinhar a articulação entre a atenção pelo ouvido e os próprios versos que, para serem lidos enquanto versos, requerem a atenção de um ouvido a que se dirigem não é (não pretende ser) mero procedimento de harmonização entre, como dantes se dizia, “forma e conteúdo”; é antes mais uma tentativa, mais um esforço para enfatizar a afirmação do poema enquanto poema. De facto, o que significa o “ouvido atento” senão uma reafirmação do entendimento emblematicamente poético da escrita, que é aquele em que deixa de haver oposição entre voz e inscrição, entre leitura e audição?

Vamos supor que toda a gente concorda com esta interpretação. O que resulta daí? Resulta que o poema “A Missão das Folhas” nada diz sobre a missão das folhas sem pressupor ou projetar um ouvido atento à emissão do poema “A Missão das Folhas”, nos seus quatro escassos, mas insubstituíveis, versos. Entre missão e emissão há um jogo necessário que não é apenas etimológico, embora a etimologia pareça aqui ela também insubstituível para traçar um perfil de poeta enquanto “homem de palavra(s)”: essa necessidade é a do envio, a do movimento do envio, que justamente não é, por exemplo neste poema de Ruy Belo, um movimento com destino seguro e garantido. Sem dúvida por isso mesmo, ele se impôs ao poema figurado em emblemas de movimento incerto, indefinido e no limite aleatório, como “folhas” e “vento”. O poema, no entanto, garante que a relação entre as folhas e o vento é uma relação que limita a incerteza ou resolve a indefinição. E sejamos claros: não se trata de fé. A fé não tem origem na contingência de uma tarde nem depende do ouvido do crente. É um saber, um conhecimento, e um conhecimento que não nasce de se estar simplesmente a olhar para as folhas sopradas ou varridas pelo vento. É preciso um “ouvido atento” e que esse ouvido seja “o meu”.

Dir-se-ia um pouco bizarro, se não irónico, esse conhecimento e o modo como ele se declara: um modo abrupto, por força do qual parece que a missão das folhas passa a ser a de “definir o vento” a partir do momento em que o poema diz (que sabe) que “...a missão das folhas / é definir o vento”. O poema, note-se, não define as folhas, não diz de que folhas ou tipo de folhas está a falar: na sua fala extremamente elíptica, qualquer folha, todas as folhas, se calhar até as folhas dos livros, têm a mesma missão: “definir o vento”. Como se o poema inventasse aquilo que sabe, inventasse neste caso a missão que atribui às folhas ou inventasse para as folhas uma missão que antes do poema não se podia dizer que elas (já) tivessem. Está aí ao mesmo tempo a força e a fragilidade deste poema, quem sabe até se não será a força e a fragilidade de toda a poesia, de uma “arte tão pouco significativa no nosso tempo como a poesia”, para repetir a frase bem conhecida do próprio Ruy Belo. A esse “nosso tempo” houve quem chamasse “a era da suspeita”. Lembro-o só para sugerir que o breve poema de Ruy Belo é o oposto de uma lamúria por essa arte “pouco significativa”. Em segredo ou em surdina, no entanto com total evidência e em voz bem audível, ele guarda convictamente, diria até autoritariamente, a força que nos torna imprescindível, hoje mais do que nunca, um ouvido atento para a poesia: eu chamar-lhe-ia a invenção do insuspeitado. O poema guarda essa força. Mas não se limita a guardá-la, a protegê-la e a impô-la. Um poema é como folhas ao vento: expõe e expõe-se, correndo todos os perigos da exposição. Também podemos dizê-lo com palavras de Paul Celan, um homem de palavra(s) que afinal talvez não esteja tão longe de Ruy Belo como parece (assunto para outro encontro). Escreveu Celan numa carta datada de 18 de Maio de 1960: “Poemas são também oferendas — oferendas àqueles que são atentos. Oferendas que transportam um destino.”

 

Gustavo Rubim

 

Referências bibliográficas:

Celan, Paul, “Carta a Hans Bender”, Arte Poética: O Meridiano e outros textos, tradução de João Barrento e Vanessa Milheiro, Lisboa, Cotovia, 1996.

Lacoue-Labarthe, Philippe, La poésie comme expérience, Paris, Christian Bourgois, 1986.

 

Nota: A primeira publicação deste texto, na versão completa, foi no livro Literatura Explicativa: ensaios sobre Ruy Belo (org. Manaíra Aires de Athayde), Assírio & Alvim, 2015 (pp. 247-255). Foi também editado no Brasil pela Chão da Feira, Caderno de Leituras nº 8.  

[1] O poema está na p. 100 da 2.ª edição de Aquele Grande Rio Eufrates (Lisboa, Moraes Editores, 1972) e na p. 71 do volume Todos os Poemas (Lisboa, Assírio & Alvim, 2000).

[2] A passagem lê-se nas p. III-IV da “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, também reproduzida no volume Todos os Poemas (p. 16).