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Alumbramento

Poemas de antes

Alumbramento

Nuno Amado

 

Alumbramento

 

Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

 

Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela… e sinto-a pura…

 

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!

 

Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma…

 

Eu vi a estrela do pastor…
Vi a licorne alvinitente!…
Vi… vi o rastro do Senhor!…

 

E vi a Via Láctea ardente…
Vi comunhões… capelas… véus…
Súbito… alucinadamente…

Vi carros triunfais… troféus…
Pérolas grandes como a lua…
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

 

– Eu vi-a nua… toda nua!

 

                                    Clavadel, 1913.

 

Manuel Bandeira, “Alumbramento”, Antologia. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.

Como se percebe retrospectivamente, assim que deparamos com a erotização do corpo feminino no último verso, nada do que Manuel Bandeira vai dizendo que viu ao longo do poema foi coisa deveras vista. A visão a que alude logo a abrir, não por acaso retomada no verso que antecede a confidência do que vira afinal, deve por isso ser entendida como interjeição: “vi os céus!” significa na verdade “Oh céus!”. Quase todo o poema é, aliás, interjectivo. À excepção desse último verso, onde o poeta faz uso da palinódia para se justificar, as restantes palavras não são senão, portanto, a expressão do êxtase em que se detivera até aí. O contraste tonal entre o adjectivo “nua”, no último verso, e o substantivo “céus”, igualmente ecoado no verso anterior, serve para marcar a mudança de registo (da interjeição para a confidência), mas serve também para tornar claro que não é pelas delícias celestiais que o poeta afinal suspira. O furor é carnal, no mais forte sentido do termo.

A “brancura” não pertence aos céus, nem aos anjos a que o adjectivo “angélica” se poderia referir, mas ao corpo desnudo de uma mulher. De igual modo, não é a serenidade etérea que, no segundo verso, acalma o poeta. Nenhuma “nuvem de amargura” há que lhe desassossegue a alma porque, para efeitos de realização libidinal, nada há a obstruir a visão daquele corpo. Não haver obstáculos entre a nudez da mulher e os olhos do poeta deve aliás ser levado às últimas consequências. Ao declarar que, mais do que “toda nua”, essa mulher é vista “sem tristes pejos e sem véus”, Bandeira não só sugere a inexistência de qualquer peça de roupa como também a inexistência de mãos envergonhadas a tapar o que não deve ser visto, como aquelas de que se serve a Vénus de Botticelli para o mesmo propósito. Não é no entanto descabido que a representação da nudez aqui em causa queira ir mais longe. Se aceitarmos que a palavra “toda” se aplica menos à totalidade do corpo e mais às partes que a nudez torna relevantes, e se não omitirmos em simultâneo a natureza “angélica” dessa nudez, é bem possível que uma mulher “sem tristes pejos e sem véus” denote uma rapariga a quem a puberdade ainda não escondeu o sexo. Talvez seja por isso que o poeta a sente “pura”.

A julgar pelo que é dito a dada altura em “Evocação do Recife”, este episódio terá sido marcante na juventude de Manuel Bandeira: “Lá longe o sertãozinho de Caxangá / banheiro de palha // Um dia eu vi uma moça nuinha no banho / fiquei parado o coração batendo / ela se riu / foi o meu primeiro alumbramento”. Ao ficarmos a saber que o poeta viu o que viu por ocasião de um banho, ficamos também em melhor posição para compreender as palavras usadas a partir do terceiro terceto de “Alumbramento”. Tal como não vira céus, nem anjos, nem nuvens a dissipar-se, Bandeira também não viu neve, mas salpicos e espuma. A visão não é mística, mas aquosa. A água que escorre pelo corpo daquela mulher, tornando-o reluzente e amortalhando-o, de certo modo, ao escorrer (“Oh, cristalizações da bruma / a amortalhar, a cintilar”), tem um destino floral entre as pernas dela. Mas essa flor não é apenas o lugar onde vão desaguar os “lírios de espuma”; é também aquilo que eles vêm fazer “desabrochar”. O interesse maior do poeta, até pela posição de destaque que lhe dá a meio do poema, é, pois, a irrigação dessa flor. A água a escorrer encaminha-lhe o olhar para um ponto específico e, quando o vento o “desapruma”, revelando-lho por inteiro, sobreexcita-o. É isso que sucede de seguida, se virmos bem. A forma verbal “vi”, reprimida nos três primeiros tercetos, explode em anáfora e o orgasmo espalha-se em triunfo pelos três tercetos seguintes.

O verbo “ver”, neste poema, é particularmente enganador. A “estrela do pastor” e a “licorne alvinitente”, por exemplo, não designam corpos astrais eventualmente ao alcance dos olhos do poeta (o planeta Vénus e a constelação do Unicórnio, respectivamente), mas os corpos de uma mulher e de um homem unidos na imaginação. O objecto da representação não é o espaço sideral, mas o desejo erótico sentido. A alusão ao “rastro do Senhor” ou à “Via-Láctea ardente” vem de resto confirmar que a cópula imaginada, como o momento climático da anáfora tornara óbvio, não fica por consumar. Quase nada do que Manuel Bandeira diz ter visto foi coisa realmente vista porque à forma verbal usada, percebe-se agora, faltava a nasalização da vogal final que melhor a serviria.

 

Nuno Amado


Nuno Amado é professor na Universidade Católica Portuguesa e escreveu um livro sobre Ricardo Reis. Nunca aconselhou um poema a ninguém, mas admite abrir uma excepção quando descobrir um que possa ajudar as pessoas a serem mais felizes.