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Amor e prazer das coisas

Poemas de antes

Amor e prazer das coisas

joana meirim

 

Amor e prazer das coisas

Para o Vasco.

 

Vou, pelo caminho olhando

de repente um pote, de repente uma ponte, de repente um vidro

com dedos em relevo.

 

Vou, pelo caminho olhando

de repente um minúsculo grão de areia, um bocado

de pano que não foi vestido,

um livro com gravuras de Rodin

e um menino de joelhos, adorando-as.

 

Vou, pelo caminho olhando

um rápido cheiro de urina,

uma camélia sem pescoço,

uma teia de aranha do tamanho do corpo.

 

Vou, pelo caminho olhando

uma mulher à janela

que fica voltada

para o lado por onde

entra o sol.

 

Vou, pelo caminho olhando

qualquer maravilha sem dono:

um prego um alfinete um cesto

cheio das coisas de que gostámos juntos.

 

Vou pelo caminho sem nada que fazer.

Apetecia-me, hoje, ao voltar duma esquina

encontrar de repente o rosto que esqueci

e de que decorei os lábios e os olhos.

 

Apetecia-me hoje dar um salto na rua,

mandar parar o trânsito, escuro e permanente,

e, perante a tola admiração dos pais,

pegar numa criança e levá-la comigo.

 

E nada lhe dizer. E pô-la no selim

dum aéreo cavalo de vento e de vertigem.

E ensinar-lhe que o amor quando é novo,

quando é puro, quando é belo,

é o mesmo que o regresso à origem.

 

E é nas coisas, nas cores, nos perfumes,

que eu me vingo e destruo o silêncio

e redimo os pecados. Se peco,

não receio nem mereço castigo.

 

Porque Deus, minha mãe e meu pai,

minha longa solidão do caminho,

os amigos que respeito e venero,

os meus bons camaradas na luta,

mais aqueles que sabem comigo

o valor das palavras, as misérias do amor,

a beleza que encanta e explode

mesmo à boca do sono e das ruas,

 

Vão comigo, na feliz companhia

das mulheres, dos enormes besouros,

das camadas de pólen que imitam

vinte anos com sangue nas veias,

com o calmo segredo, o mistério,

a ciência de ser o senhor

das contíguas riquezas do mundo

e das grutas brilhantes da alma.

 

Vão comigo, na ronda, nos dias,

nas conversas, nos seus intervalos,

no silêncio que cai das estrelas,

no veludo de esperanças e riso,

vão comigo os mortais pecadores,

esses répteis que comem ortigas

e se deitam, deslizam e luzem

na tranquila limpidez dos lagos.

 

Vão comigo reunidos, vermelhos,

mais contentes que as mãos dos amantes,

com mais brilho do que os diamantes

e mais força do que o mar acordado.

Vão comigo, cantando comigo,

com as barbas do Walt e as viagens do Álvaro,

e as ciganas que lêem a sina

a quem sabe demais o sentido

que há-de dar um rumo às palavras,

dar um ritmo às bolhas do sangue,

dar aos pés a viril velocidade

dos que cobrem as velhas distâncias

com uma rosa maldita nos lábios,

com uma rosa maldita na boca

que se abre, com ardência e volúpia,

à manhã que subindo aniquila,

que desmaia e liberta e que funde

a matéria que corre, fluida

como o fogo, como a luz, como os beijos

com que vou no caminho em que vou

dando a vida que nunca tiveram

a todas as coisas que, ao vê-las, eu amo,

a todas as coisas que os outros não viram.

 

… Vou pelo caminho com lágrimas nos olhos,

com a paixão do vento nas crinas dos cavalos.

 

Raul de Carvalho, “Amor e prazer das coisas”, Poesia. Lisboa: Portugália Editora, 1956.

Quando há uns anos descobri este poema, num desses encontros acidentais no espólio de Eduardo Prado Coelho cedido à biblioteca municipal de Famalicão, a primeira impressão que se libertou da leitura foi a súbita deflagração das imagens, como instantâneos fotográficos. Li-o quando já se havia tornado prática corrente nos meus dias andar com a máquina fotográfica pela cidade, captando súbitas emergências das horas, acasos, pequenos despojos acantonados. Nada de urgente; mas pequenos nadas que, alguns segundos depois, se arriscariam a fazer parte desse Nada maior, absoluto e impenetrável.

O amor e prazer das coisas nasce desta paixão de colecionador que se espraia, sobretudo, pelas seis primeiras estrofes. Enumerar minudências, acasos, pequenos nadas: a vertigem começa na possibilidade de a lista se tornar uma desordem infinita, uma abertura sem fecho. Evidentemente, há uma seleção ou um filtro operado pelo olhar (são estas as coisas, sem as quais o poema não teria forma nem uma extensão reconhecíveis), mas o efeito de real proporcionado pela leitura seduz pela alucinação do excesso, pela infantilidade curiosa da enumeração sem fim, indecidível, como andar às voltas num carrossel, “no selim / dum aéreo cavalo de vento e de vertigem”.

É “de repente”, por epifanias, por relâmpagos, que cada encontro fulgura como espaço e tempo do intempestivo, a marca acidental que determina um acontecimento. Por isso, “um minúsculo grão de areia”, “um rápido cheiro de urina” ou “um prego um alfinete um cesto” irradiam sentido: cada um destes detalhes é absoluto na sua singularidade e daí irrecuperável, exorbitando o seu valor de uso. Há uma ternura especial no gesto de os nomear um a um como se isso os inscrevesse, como se a própria escrita continuasse o peso substantivo das coisas, a sua irregularidade e aspereza. Daí que, celebrando a vida a partir dos seus vestígios, o poema se faça cântico “com as barbas do Walt e as viagens do Álvaro”: o poema longo, o verso livre, a imanência da vida – a vibrante e calorosa afirmação da vida no poeta de Leaves of Grass, que contagiaria depois a exaltação furiosa e sensacionista de Álvaro de Campos na “Ode Triunfal” e na “Ode Marítima”.

Por fim: a poetização do real? Como se diz, por exemplo, de Cesário, cujos olhos perseguiam ávidos o que o Sol, “o intenso colorista”, lhe dava a ver a caminho do trabalho, palmilhando a cidade moderna, em vias de se tornar modernista? (E repare-se como também não escapa a Raul de Carvalho “uma mulher à janela / que fica voltada / para o lado por onde / entra o sol”.) Não só, mas também. Porque há, igualmente, o real da poetização: um modo quase primitivo e arrebatado de encarar o ofício das palavras, de estendê-las ao longo da página segundo uma cadência própria, um corpo emocionado (e à emoção subjaz a moção, o movimento, o ritmo e errância do corpo: afinal, “vou pelo caminho”…), a prosa do mundo encavalgando-se na forma poética. O real deste poema fascina-me por se me oferecer tão contíguo ao meu hábito de fotografar “qualquer maravilha sem dono”, por onde quer que ande, por onde quer que me deixe ir. E assim como o elenco de coisas e encontros no poema sugere a deflagração de flashes fotográficos, também a fotografia como eu a vejo, alucinando o real do mundo ao mesmo tempo que o consagra pela sua aparente objetividade (o aqui-e-agora de cada experiência e acaso, a substância que torna nosso o tempo desta ou daquela imagem: como se aquilo que captámos estivesse desde sempre à espera do nosso olhar), ao invés de revelar o real, ou de o retirar forçosamente da sombra, continua-o, desdobra-o. A fotografia continua o real, continua-lhe a sombra, acresce-lhe existência e poesia (não serão a mesma coisa?). Constitui-se “o calmo segredo” de ser cúmplice dos signos que ditam a nossa pertença a uma comunidade do espanto. Ou que anunciam, no mínimo, a alegria dessa possibilidade de partilha, de haver algo em comum com os outros: “como o fogo, como a luz, como os beijos / com que vou no caminho em que vou / dando a vida que nunca tiveram / a todas as coisas que, ao vê-las, eu amo, /a todas as coisas que os outros não viram.”

(No lirismo provençal, acreditava-se que o amor entrava pelos olhos, fulminando os amantes por dentro. Ao ver as coisas, o olhar torna o amor possível. As coisas passam, de súbito, a existir na sua plenitude, no que nelas há de absoluto. No que nelas, ao vê-las, excede os limites do discurso. E esse excesso, esse silêncio, esse mutismo rumoroso e insistente – eis a poesia, eis a fotografia. O real torna-se um imenso eis de si mesmo.)

Sem qualquer dissimulação que não seja a inevitável mediação da escrita, partilha-se, assim, um pouco desta nudez de existir e de estar no mundo: a desbragada inocência com que se diz, entre outras coisas (e o serem coisas e outras não é de todo despiciendo, porque vital), “o amor quando é novo, / quando é puro, quando é belo, / é o mesmo que o regresso à origem”. Não se sabe que origem é essa, nem se é ainda a infância a idade de ouro que segrega ulteriores nostalgias e revivalismos. Mas regressa-se, chega-se a um lugar com feições de casa, crê-se no poder de o afirmar. E à imagem de Alberto Caeiro num dia de calor, estendido na erva, com “os olhos quentes” de tão imensa realidade, também Raul de Carvalho vai pelo caminho “com lágrimas nos olhos, / com a paixão do vento nas crinas dos cavalos”. Às vezes, toda a alegria do mundo está em comovermo-nos assim: passamos entre as coisas, as caras, os sítios, e no gesto delicado de inclinarmos a cabeça enquanto fechamos os olhos, fazemos que sim, mostramo-nos gratos, e seguimos, com o calmo segredo de sermos dignos do que nos acontece. Qualquer coisa assim.  

 Diogo Martins


Diogo Martins é licenciado em Estudos Portugueses – Ramo Ensino pela Universidade do Minho, a mesma faculdade onde concluiu o doutoramento em Teoria da Literatura em 2015. Atualmente, é bolseiro FCT e desenvolve um projeto pós-doutoral em torno da escrita de Rui Nunes, na Faculdade de Letras do Porto. Escreve com regularidade na revista Vila Nova, sobretudo acerca de livros e filmes, mais os intervalos entre eles e entre outras linguagens artísticas.