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 Cerra a serpente os ouvidos

Poemas de antes

Cerra a serpente os ouvidos

Maria S. Mendes

 

Cerra a serpente os ouvidos

 

Cerra a serpente os ouvidos

à voz do encantador; 

eu nam, e agora, com dor,

quero perder meus sentidos.

Os que mais sabem do mar 

fogem d’ouvir as Sereas;

eu não me soube guardar:

fui-vos ouvir nomear,

fiz minh’alma e vida alheas.

 

Francisco Sá de Miranda, “Cerra a serpente os ouvidos”, Florilégio do Cancioneiro de Resende, 4ª edição, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Lisboa: Textos Literários, 1973.

 

Este poema não devia ter sido esquecido porque consegue resumir, em poucos versos, uma intensidade sensorial vívida e única. A originalidade do poema, penso, assenta no referente inicial e exótico, a “serpente”, que resiste à sedução do encantador, mais concretamente à sua voz. A serpente representa a grande oposição ao poeta por ser corajosa e autónoma, sabendo resistir ao som sedutor e atraente. Já o poeta, não; quer perder os sentidos porque estes, principalmente a audição, lhe causaram grande desgraça, fazendo com que se apaixonasse por uma encantadora. Em dois versos visualmente evocativos do mar e das Sereias, e que igualmente constituem um momento de intertextualidade com a Odisseia e o astuto Ulisses (que, “sabendo do mar”, se amarrou ao leme para resistir à tentação do canto das “Sirenes”), o poeta volta a sair-se muito mal na comparação com o mesmo Ulisses. Quer este, quer a serpente souberam “guardar-se”; o poeta, não. Fala do seu erro como se de mera coincidência se tratasse, quase dizendo “ouvi-te por acaso, calhou”. E talvez seja isto mesmo o amor apaixonado, um erro que acontece, que calha, e quando damos por nós já as Sereias nos tentam afogar. O poeta enuncia o seu erro, que quase quer fazer passar por trágico, da seguinte forma: “fui-vos ouvir nomear”. Não há palavras, para além do verso, para descrever a beleza do próprio. Não admira que Sá de Miranda fosse tratado por “Doutor”, a escrever assim. 

Embora o tom do poema não seja na verdade trágico nem triste, o poeta fala do seu amor como se de um efectivo erro trágico se tratasse, no sentido em que, no momento em que dele teve consciência, era já tarde para o corrigir – tudo perdido, “fiz minh’alma e vida alheas”. De notar que o sujeito dos três últimos versos é o poeta, que assume, assim, as consequências do seu erro. A consequência foi apaixonar-se pela encantadora de serpentes. Haverá, com certeza, destinos piores. 

Este poema é inesquecível pelo seu universo referencial (a serpente, o mar, as Sereias) e pela intertextualidade (com a Odisseia e Ulisses), bem como pelo poder sensorial da audição -  o poeta apaixona-se não devido à visão e à beleza da Senhora, mas sim pela beleza da sua “palavra”, da sua “nomeação”, que cometeu o erro de ouvir. A originalidade do poema está também na forma como a atracção pela Senhora se configura, parecendo mais intelectiva do que aquilo a que normalmente estamos habituados. 

Assim, o amor é um erro intelectual. Torna-nos mais baixos do que a inteligente serpente, e feridos pelo canto das Sereias. A vantagem é que também dá origem a grande poesia, o que compensa.

Rita Faria 


Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.