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Poemas de agora

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o que dói primeiro

Maria S. Mendes

 

o que dói primeiro

 

todo urubu titia gritava
urubu urubu sua casa
tá pegando fogo

todo estrondo na rua
papai dizia eita porra
aposto qué bujão de gás

todo avião vovó acenava
é seu tio! desquentrou preronáutica
num tenho mais sossego

temi e ainda temo toda espécie
inflamável lamentei tanto urubu
desabrigado desejei o fim
da força aérea brasileira

só custei a entender mamãe
e o que queria dizer com seu irmão
não vem mais brincar com você
papai do céu levou.

 

Bruna Beber

 

Gosto deste poema porque é um relato engenhoso de uma experiência pessoal, um retrato preciso de uma experiência universal (a da constituição das primeiras crenças e perplexidades) e ainda uma reflexão sobre a durabilidade dessas crenças e dessas perplexidades. De certo modo, agrada-me porque me conforta quando digo “onteontem” em vez de “anteontem” e me explica por que é que tantos adultos são incapazes de mergulhar no mar antes de terem decorrido três horas desde a ingestão da última bola-de-berlim.

O poema mostra como o conhecimento que é veiculado às crianças por familiares tem uma resistência extraordinária à passagem do tempo, chegando mesmo a atropelar os factos e a lógica. É essa resistência que se aborda na quarta estrofe, onde a poetisa revela que ainda hoje teme “toda espécie de inflamável” devido ao seu pai lhe ter ateado, outrora, a ideia de que todos os estrondos são causados por explosões de botijas de gás. Esta ideia persiste, para lá de qualquer lógica que a refute, devido ao facto de a fonte ser o seu pai e não um tratado sobre fenómenos de combustão. Sugere-se, assim, que a formação e a duração de um certo tipo de conhecimento dependem sobretudo do tipo de relação existente entre a fonte e o destinatário envolvidos no processo de transmissão de conhecimento. Onde faltam factos, lógica, demonstrações e argumentos, sobram afectos que obliteram essas faltas.

Se não fosse tão marcado pela afectividade, este poema seria apenas uma descrição da ingenuidade característica da infância. Essa afectividade está explícita não só quando, por exemplo, se afirma o desejo de extinção da força aérea brasileira como expressão do desejo de apaziguar a avó, mas também, de forma mais interessante, na recuperação do vocabulário e da dicção de cada um dos familiares, desde a repetição encantatória da tia até à espontaneidade das interjeições paternas. Sublinha-se, assim, a existência de uma relação entre a resistência de certas ideias e a sonoridade com que as mesmas foram originariamente transmitidas, como se um determinado enlevo sonoro evitasse os embates da lógica e da cientificidade. Não é, aliás, por acaso, que o poema começa com uma referência a uma crendice popular oposta a qualquer tipo de lógica: a tia “alerta” os urubus para o incêndio, que, supostamente, está naquele momento a destruir as suas casas, com o intuito único de afastar o animal de perto de si, pois vê-o como um mau presságio (este “aviso” pode inclusive ser a repetição de uma fórmula tradicional que a “titia” ouvira na sua infância).

A isto junta-se uma mestria técnica no uso da repetição e da aliteração, característica das primeiras quatro estrofes, aquelas em que é invocada essa “memória sonora” que serve para as unir e, consequentemente, separar da última. Esta demarca-se estilisticamente porque narra a perpetuação de uma perplexidade e não de uma crença. Nela se mostra que parece não haver qualquer tipo de relação afectiva ou de enlevo sonoro capaz de conferir credibilidade às tentativas alheias de explicar a morte do irmão. Mesmo recorrendo a um eufemismo habitualmente usado para explicar a morte às crianças (“pápai do céu levou”), a mãe falha. A evidência esmagadora da ausência impõe-se a todo o amor e a toda a beleza presentes naquele esclarecimento. O amor e a poesia fazem-nos acreditar em muitas coisas, mas não em todas. Às vezes, é preciso sofrer para crer.

Jorge Almeida


Jorge Almeida é licenciado em Estudos Portugueses e doutorando no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). Escreve crítica literária no Observador. Sabe de cor um poema de Cesário Verde e versos avulso de outros poetas, mesmo não se tendo esforçado para que isso acontecesse.