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Entrevista Eucanaã Ferraz

Entrevistas

Entrevista Eucanaã Ferraz

joana meirim

1 Eucanaa Ferraz ©Joana Dilão.jpg

Entrevista a Eucanaã Ferraz

Lisboa, 18 de Maio de 2019

No dia do aniversário do poeta, encontrámo-nos na esplanada do Centro de Arte Moderna. “18.05.1961” é o título de um poema de Eucanaã (em Livro Primeiro), que nasceu, diz o poema, “num lugar pobre,/ onde o hospital era longe”, mas de onde já era possível ver a felicidade, tema falado nesta conversa e tão negligenciado por vários poetas e críticos que nos aconselham a desconfiar da alegria e das coisas boas da vida. A acreditar no verso de Pessoa – “Mas o melhor do mundo são as crianças” – conversámos também sobre a poesia para a infância e sobre como escrever para crianças é escrever livre de censura. 

 

JF: Gosta de poesia?

 Adoro (risos). Eu acho que é o que o eu mais gosto, além de música e... pintura.

 

JF: Para que serve a poesia hoje? E a sua?

 Poesia serve para que tenhamos o mínimo de dignidade como pessoas. A minha poesia teria essa mesma ambição.

 

JF: Num dos seus livros de poesia para crianças (e também para adultos), escreveu na sua biografia que resolveu escrever poemas “para colocar neles todas as coisas de que gostava”. Consegue fazer essa proeza?

 Consigo colocar muitas coisas de que eu gosto e, infelizmente, também as coisas de que eu não gosto.

 

JF: É por essa razão que se diz que a sua poesia é solar e alegre?

 A alegria me interessa muito. Mas, curiosamente, a alegria é pouco valorizada como estado de espírito. A felicidade, por exemplo, goza de um status…, embora sempre se diga que ela não existe, que são momentos fugazes, como se algum outro estado de espírito fosse permanente. Mas só da felicidade isso é cobrado. Da alegria, nem isso, porque ela é por si só mais frágil e... momentânea, como se fosse uma chama que se extingue rapidamente. É um ânimo que tem a ver com um entusiasmo pelas coisas justamente por ser uma intensidade sem compromisso com a duração. É, nesse sentido, um profundo prazer de viver. E isso eu tenho. Então, de algum modo, mesmo quando os poemas são, e muitas vezes são, disfóricos, tristes e tratam de coisas duras e traumáticas, mesmo ali é como se, na base, houvesse desejo de alegria e também uma queixa de que o mundo nem sempre é propício à alegria. Há artistas cujas obras podem ser muito alegres, e eles me cativam muito. Penso no Miró, como o Miró é alegre; no Calder, como é alegre; como Eugénio de Andrade pode ser alegre; como a Sophia de Mello Breyner pode ser alegre. Há nas suas obras uma luz que vem da alegria.

 

JF: No prefácio a Poesia, Carlos Mendes de Sousa fala que existe uma certa desconfiança por “poetas da claridade”. Compreende o motivo desta desconfiança?

 Realmente, acho que de maneira geral sempre há essa desconfiança. Eu gostaria que a minha poesia fosse ainda mais alegre. Mas onde há luz há a sombra... até para que haja luz é preciso que a sua contrapartida apareça. Há uma imagem de um dos poemas, não sei se do primeiro livro ou segundo, enfim, dos primeiros livros, que diz alguma coisa como: “o poema é ver/com lanternas/ que cor é a cor/do escuro”. Então é isso, o poema é uma lanterna: a procura do escuro necessita de uma lanterna, então já não se chega mais ao escuro, porque alguma coisa já se iluminou. Mesmo nas obras muito sombrias, terríveis e trágicas há luz, porque o leitor ou o espetador quando se defrontam com uma obra de arte, por mais terrível que ela seja, sente que alguma coisa com ela se ilumina, como se o próprio facto de a sombra ter se transformado em linguagem, ter se reconstituído como forma, já nos desse uma compreensão da nossa condição trágica. E aquilo é uma luz em si.

 

JF: Na secção “À mesa de trabalho” de Desassombro, escreve uma arte poética em várias partes. Como encara o trabalho do poeta: entre a procura de clareza e o polimento do verso?

 Eu acho que a poesia é inevitavelmente trabalho. É preciso criar e desconfiar e fazer de novo e tentar, errar e acertar e então erra-se de novo. É uma tarefa árdua. Agora, o que está em jogo nisso tudo está muito além de uma simples confecção. Na oficina, há uma dimensão que é de alumbramento, de encantamento, de susto, entusiasmo pelo desconhecido. O maquinismo psíquico, emotivo, atua enquanto se trabalha. Há aquelas célebres fórmulas matemáticas de transpiração e inspiração e há uma longa conversa em torno disso – 30% por cento de inspiração, 70% por cento de transpiração, enfim, fica-se sempre procurando isso.

 

JF: Já chegou a dizer que era tudo 100%.

 Sim, sempre digo que é 100% inspiração, 100% transpiração. Idealmente, quando se trabalha num poema, a certa altura você já não sabe o que é que está fazendo racionalmente nem o quanto a sua razão está sendo movida por alguma coisa que está além de você; e o que está além de você é o próprio poema, não é alguma coisa sobrenatural. A chamada inspiração vem de um lugar desconhecido. Ele guarda o poema, que estranhamente está sendo feito por você. E aí ele vai criando soluções, você procura fazer o poema que você ainda não sabe qual é. Então, é realmente uma oficina, mas é um trabalho com o desconhecido, com o que não se sabe, com o que está além de você.

 

JF: O olhar está na origem da sua produção poética. Diz até, ao jeito de Caeiro, que “pensa com o olhar”. Julgo que diz isso mesmo no poema “Pintor”, de Cinemateca.

 A minha sensibilidade é muito visual; sou movido pelo olhar. Eu cheguei aqui e já vi a cor das cadeiras, com uma coisa empilhada, vermelho, cinza, branco... eu já vi tudo, o meu olho é rápido e é abrangente. Retratos com erro é um livro muito ligado à fotografia e faz mesmo referências a fotógrafos e à fotografia... eu sou do olho, entendeu? Eu poderia ter sido, talvez, alguém que trabalhasse com a visualidade: um fotógrafo, um pintor, ou alguém que lida com a matéria visível. Por acaso não aconteceu e eu acabei indo para um mundo onde, aparentemente, a peleja é com a abstração, ou melhor, com uma matéria que não é exatamente visual, que está ligada ao pensamento. Mas ali, essa sensibilidade aparece. Por isso meu gosto por poetas que, de algum modo, são movidos pelo olhar, quando não há mais distinção entre ver e pensar, ver e sentir, uma coisa move a outra. Daí a minha atração, por exemplo, pela Sophia, por um certo Fernando Pessoa e pelo João Cabral de Melo Neto. São poetas que, cada um a seu modo, pensam com o olhar. Saindo do círculo dos poetas, sempre me lembro de Matisse. Em primeiro lugar, porque ele tem aquela alegria, joie de vivre, e eu tenho joie de vivre. E o Matisse é uma pessoa muito especial para mim, porque foi o primeiro artista moderno que conheci. Eu nunca tinha visto um artista moderno na vida e quando vi aquilo fiquei encantado. Ali havia rosa, vermelho, verde, e era alegre, vibrava, a cor era uma vibração de luz, uma luz que se espalhava inteira sobre tudo, a luz vinha das próprias cores e das formas e não de fora; tudo era iluminado. E desde então Matisse é o artista da minha vida. É aquilo que eu persigo, é aquilo que eu gostaria de ser, escrevendo. Não consigo, mas a minha ambição era saber escrever como o Matisse pinta.

 

JF: Disse numa entrevista que a poesia brasileira nunca viveu a angústia da influência e substituiu a expressão bloomiana por “alegria da influência”. Existe camaradagem poética no Brasil?

 Talvez eu tenha generalizado para o Brasil uma coisa que é mais minha. Mas de qualquer modo, quando penso na cena brasileira num espectro maior, eu vejo claramente a retomada de poetas de gerações anteriores, e da própria geração; reconheço interesses comuns, formulações em grupo, como se houvesse mesmo um espírito de comunidade que nunca foi menor do que o desejo, que também é justo, de superação e de negação, de discordância. Sempre me comoveu que João Cabral homenageasse Manuel Bandeira, ou que um poeta como Vinicius de Moraes não existisse sem Manuel Bandeira. Três poetas muito diferentes entre si. Então, gosto de pensar na relação com a tradição não como um problema, mas como alguma coisa propulsora, um motor que leva para a frente, que ensina, que tem lições a dar. O aprendizado não é algo contra o qual tenha que se lutar, porque se a lição pode ser de continuidade, essa permanência não tem que ser exatamente um pastiche, uma preguiça, uma assimilação sem críticas. Ela pode ser simplesmente uma relação sem conflitos, por isso uma relação afetuosa, entendeu? Eu acho que há muita vontade, no mundo artístico, de que haja sempre conflitos, como se só o conflito fosse capaz de levar para a frente. Eu não penso assim. Julgo que há uma idealização do conflito. A amizade, a coincidência, podem mover, transformar, sem que haja subserviência ou mera assimilação. Cada um acaba encontrando o seu caminho, sem que para esse caminho seja necessária uma relação traumática com a tradição ou com os contemporâneos. Mas sei que nem sempre é assim, pois as dinâmicas variam muito com o momento histórico, com as personalidades dos criadores, dependem mesmo de contingências que por vezes nem pertencem à esfera da criação.

 

JF: E em Portugal, como vê as relações entre os poetas, há relações traumáticas?

 Talvez haja, mas não sei se eu sei falar sobre isso (risos)... Por exemplo, a minha poesia... não, não gosto muito de dizer “a minha poesia”, acho uma coisa pretensiosa, não utilizo essa expressão. No que eu escrevo... em relação aos portugueses, por exemplo, eu sempre falei e sempre falo em Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, poetas da minha vida, que eu amo. O primeiro poeta que eu li foi o Fernando Pessoa. Eu basicamente fazia pastiches dos seus poemas, eu comecei a escrever querendo ser Alberto Caeiro: o olho, a matéria do mundo, era como se tivesse encontrado a mim próprio, descoberto a possibilidade de escrever sendo alguém que apenas vê o mundo. E há o Jorge de Sena, o Gastão Cruz, o Cesariny, o Luís Miguel Nava, sempre faço muita questão de dizer que sou devedor desses poetas, não quero esconder minhas dívidas, meus mestres e meus contemporâneos. E isso não me faz menor nem maior; isso só me dá a ver como eu sou, é só um gesto de sinceridade. Acho que não é mais inteligente parecer que você se fez contra tudo e contra todos, não é a verdade.

 

JF: Sobre a sua poesia, Carlos Mendes de Sousa faz esta síntese das suas relações com outros poetas: “sofisticada simplicidade de Bandeira; fundura reflexiva de Drummond; a sintaxe de João Cabral; a leveza de Eugénio de Andrade e a nitidez de Sophia”. Concorda? São influências alegres da sua poesia?

 Se tivesse tudo isso seria um poeta esplêndido! (risos)

 

JF: O que é a leveza do Eugénio de Andrade?

 Leve tem a ver com a matéria que se procura, com o mundo para o qual se está atento e sobretudo com o mundo que se cria. O mundo de Eugénio é leve. Tantas vezes ele falou da procura de uma sílaba: uma sílaba o salvaria da escuridão, da tristeza. Uma sílaba. A procura por essa sílaba não é ligeira, não é fácil. É uma procura terrível. É trabalho e é principalmente a exigência de que a poesia arranque ao mundo uma coisa pequena, breve, mas que tenha a potência de uma irradiação, a capacidade de vencer a sombra, a melancolia. É muita coisa, é exigir muito da vida e da escrita que uma sílaba possa fazer isso tudo. Então, a leveza não é absolutamente algo menor, ao contrário. Sabe, às vezes é mais fácil escrever em favor do peso, da densidade, da sombra...

 

JF: E às vezes é mais fácil ser-se grandiloquente.

Pois é. Então, você encontra a grandeza e a radicalidade no pequeno gesto... A poesia do Eugénio mostra essa síntese, essa economia do mínimo, diferente de certo minimalismo das artes visuais, muito fria e estritamente intelectual. A geometria do Eugénio é muito sensível, tem muita ternura.

 

JF: Li que se considera um “poeta-trabalhador”, no sentido de poeta-artífice das palavras. Mudando a perspetiva: imagina-se a ser poeta a tempo inteiro e não ter outro trabalho que não este?

No meu caso, eu adoro trabalhar (risos). Gosto de trabalhar com as mãos, fazer coisas, estar ativo; eu sou um fazedor de coisas. Não suportaria ficar em casa sozinho fazendo poemas, por mais que aquilo seja uma oficina, e é. Não, eu preciso juntar pessoas, editar livros, entendeu? Se eu vir as fotos dela [Joana Dilão] e gostar, já fico com vontade de fazer um livro (risos). Vamos fazer um livro? Então, já quero fazer um livro e... gostei desse lugar, o que é que podia fazer? Podia fazer um recital de poemas ali, mas num recital seria bom que houvesse música... Você conhece algum quarteto de cordas? A gente podia somar um quarteto de cordas à leitura, no cair da tarde. Vamos fazer? Vamos! Entendeu? Muito rapidamente eu já quero inventar coisas e eu gosto desse tipo de trabalho, porque eu gosto de criar, gosto de fazer coisas. O que eu mais gosto de fazer é poesia, muito embora eu não deseje fazer só poesia. Mas se eu tivesse que me dedicar a uma só coisa, seria ao verso, não tenho dúvida, porque, nesse caso, é bem mais que trabalho.

 

JF: Fez várias antologias: Caetano, Adriana Calcanhotto, etc. Acha que existe diferença entre uma letra de canção e um poema? No Brasil não me parece que seja sequer uma questão...

Não é que esse problema já não exista no Brasil, mas ele é fácil de ser resolvido, porque lá a canção popular atingiu um nível altíssimo há muito tempo, e em vários momentos ela chegou a patamares mais altos do que a poesia do livro, do que a poesia escrita, não tenho dúvidas. Tudo aquilo que se pede à poesia dos livros — a simplicidade sofisticada de Manuel Bandeira, a densidade essencial de Eugénio de Andrade, a luminosidade — tudo o que ele [Carlos Mendes de Sousa] escreveu parece estar descrevendo uma possível faceta do Caetano Veloso ou da Adriana Calcanhoto, ou do Chico Buarque, entendeu? O Brasil tem um conjunto de compositores esplêndidos; um acervo de canções tão formidável que esse problema, para mim, não é mais um problema. Entre outras coisas, eu sou professor, e a universidade, no Brasil, dá muita atenção à canção popular, então há muitas dissertações e teses de doutoramento sobre compositores. Sobre o Caetano há várias; acabei de orientar uma tese sobre a Adriana. Sobre o Chico Buarque então, há várias, e por aí vai... Mesmo a universidade já é muito porosa a essa presença da letra de música, da canção no âmbito da pesquisa académica.

 

JF: Pois, julgo que em Portugal já se quebraram algumas fronteiras, mas continua presente a ideia de dois tipos de cultura, a ideia de hierarquia...

Eu acho que o Brasil teve, além da própria qualidade da canção, que reforçou essa presença e esse respeito, um facilitador que foi um contacto muito íntimo com a cultura pop americana. Então, a hierarquia, a alta e baixa cultura, no mundo americano nos anos 60 já tinham jogado isso na lata de lixo da História, porque o mundo pop era tão incrível, a linguagem era tão radical, e tudo aquilo que se procurava na alta arte, a baixa cultura estava fazendo de maneira muito mais interessante e inteligente e renovadora do que a própria arte dos museus ou dos livros. E o Brasil sempre esteve muito aberto a isso, enquanto que Portugal estava fechado numa ditadura tacanha e xenófoba. O Brasil também esteve numa ditadura, mas era uma ditadura amiga dos americanos. Era uma ditadura, mas, digamos, internacionalizada. Tirou-se, daí, do horror, uma coisa boa.

 

JF: Como é escrever poesia para crianças?

 Eu chamo poesia para a infância, gosto dessa categoria; e a Adriana disse uma coisa que eu adoro e adoptei, que é “censura livre”. Ou seja, qualquer um pode ler. Eu diria que os outros livros não são para qualquer um. “Censura livre” é quando a criança pode ler e o adulto também. Quanto aos outros livros, não é que só o adulto possa ler, mas é que a criança não acharia interesse nenhum naquilo. Enfim, é censura livre. Escrever para crianças é uma experiência diferente.

 

JF: Pensa no destinatário?

 Isso, a diferença é que eu estou pensando num destinatário. Agora, onde é que não é diferente? Na poesia para a infância eu tenho todas as preocupações que me guiam quando escrevo para o público exclusivamente adulto. O mesmo cuidado formal, a mesma necessidade de fazer do poema um objeto rigoroso, construído, existencialmente denso. Eu não facilito para as crianças, entendeu? Eu não tento ser fácil ou ligeiro; em hipótese alguma. E nunca didático, nenhum ensinamento, eu não ensino nada para as crianças, não sou capaz. Ao contrário, se alguém tivesse de aprender seria eu com elas. Não tenho nada para ensinar. Os adultos acham que é preciso ensinar porque aprenderam coisas ao longo do tempo, mas elas são quase todas ruins, não vale a pena se ensinar. Ah, ensinar o quê, a ser triste? A não dormir? A ter insónia, a pensar no dinheiro, a sofrer de amor? Isso são coisas horríveis! Tudo de bom que os adultos ainda têm as crianças têm fartamente, então elas é que podiam ensinar para a gente. Eu não quero ensinar nada. Acho que muitas vezes a poesia para a infância quer ensinar coisas, são didáticas, eu não faço isso. Nem as possíveis boas lições — “somos todos amigos” — são verdades, não somos todos amigos. Entendeu? Que “tem que respeitar”... respeitar a família então, isso é que não, por favor. (risos) Ao contrário, entendeu? Quando escrevo para criança eu tento ser bem próximo da liberdade da criança.

 

JF: Eu acho que o perigo da literatura para a infância é doutrinar as crianças. E também me preocupa a moral da história.

 Não, não, sem moral da história. Alguns poemas são muito amorais, no sentido de que o que querem mesmo é valorizar uma coisa na criança que é anterior à moral. Eu gosto muito, por exemplo, de crianças inadaptadas, porque os adultos sempre têm a impressão de que a criança está adaptada a tudo e que o mundo é uma coisa que a faz feliz, não é verdade. As crianças, porque eu me lembro quando era criança, muitas vezes são tristes, inadaptadas... O poema “O Marciano” [no livro Bicho de Sete Cabeças e outros Seres Fantásticos], em primeira pessoa, é sobre uma criança, menino ou menina, gauche.

 

Não tenho antena na testa

e não sou esverdeado.

Mas quer saber de uma coisa?

 

Quando estou aborrecido,

e não quero ver ninguém,

eu me sinto um marciano!

 

Então, não é um marciano que vem de Marte, é alguém que se sente um marciano. Ora, sentir-se marciano é uma sensação terrível, não é uma coisa agradável. Não quero culpar as crianças por certos sentimentos. “O Lobisomem” [do mesmo livro] é um poema terrível.

 

Pobre lobisomem,

porque é lobo,

porque é homem,

porque é lobo e homem.

 

Pobre lobisomem,

porque é sozinho,

porque é triste,

porque é triste e sozinho.

 

Pobre lobisomem,

porque tem garras,

porque tem pelos,

porque tem patas,

 

e porque tem garras,

pelos e patas,

o pobre lobisomem

fere o que ama.

 

Não quero esconder que a criança vai ser ferida e que ela vai ferir, apesar do amor, e assim será para sempre, não é? Muitas vezes ferimos o que amamos, então mesmo o amor não é uma coisa compacta e sem fissuras. Agora, é engraçado que eu falava tanto na alegria e na leveza e parece que na hora das crianças eu ponho tudo de pior e mais duro, não é?

 

JF: Mas as figuras que poderiam ser mais assustadoras aparecem com um lado humano e divertido.

E eu gosto de coisas assim. Por exemplo: muitas vezes sentimos dentro de nós uma coisa grande e estranha, feito um lagarto feroz. O dragão [referência a outro poema do mesmo livro] não é alguma coisa que esteja fora de você, é algo que está dentro. Ao mesmo tempo se você se livra dele, você se livra de alguma coisa que você deve manter.

 

Mas se mudamos de assunto

e esquecemos o dragão,

tudo fica bem tranquilo,

tudo assim: sem emoção.

 

Sem um problema qualquer,

fica tão sem graça

na nossa imaginação...

que não acontece nada!

 

Esse nada pode ser...

Adivinhe, adivinhe...

 

O DRAGÃO!

 

Então, o dragão é o problema, mas não só o problema que se tem, pode ser o problema que não se tem, ou seja, não ter um problema pode ser um problema: é o vazio, entendeu? O medo te mantém vivo, não é? É o que mantém a vida. Enfim... adoro escrever para crianças. Além disso, eu me sinto muito livre de cobranças do tipo influências, não sei quê, categorias, com quais autores estou em diálogo.

 

JF: É verdade, isso é injusto para o trabalho do poeta.

É uma coisa de duas pontas. Como não se valoriza com justeza a poesia para a infância, a maior parte da crítica acha que não vale a pena pensar sobre ela. Isso é uma pena, pois a crítica ajuda o autor a pensar sobre o que faz, e também a crítica aprende muito com os autores sobre os quais se debruça. Ao mesmo tempo, como pouco se pensa sobre a poesia escrita para a infância, os autores trabalham com uma liberdade enorme. Quer dizer, ninguém vai procurar influências, nem questionar se a forma adotada aqui ou ali poderia ser melhor de outro modo... ninguém vai me cobrar que eu tenha que reinventar a linguagem e mudar os rumos da poesia contemporânea.

 

JF: A menos que seja alguém que esteja a fazer uma tese em literatura infanto-juvenil.

Também não. Mesmo nessas teses podem se fazer comparações, mas não é uma cobrança como acontece com a poesia de maneira geral, que eu acho que é uma cobrança excessiva. E é uma coisa dos próprios poetas, é uma coisa da comunidade dos poetas, dos professores, da crítica.

 

JF: E acompanha as ilustrações dos livros para crianças?

Ah, essa é outra parte da alegria de fazer livro para criança. Vocês conhecem o André da Loba? Eu descobri o André da Loba. Eu sabia que ilustração queria. Não queria figuras desenhadas, nem pinturas, nada bidimensional, imaginava esculturas e desejava que tivesse uma coisa moderna, algo entre Matisse e alguma coisa que não sabia o que era. Enfim, eu formei na minha cabeça tudo o que o André da Loba faz, só que eu não conhecia o trabalho dele. E eu sempre escolho os meus ilustradores, porque eu gosto, me encanto; a editora sempre me dá total liberdade para chegar até ao ilustrador, só que nesse caso eu não tinha alguém e tudo o que eu via quando procurava nos livros e na internet podia ser excelente, mas não era exatamente aquilo. E aí um dia, não sei mais como, cheguei ao André da Loba, e eu falei “meu Deus, mas é isso! Eu sonhei com isso! É isso!” Quando entrámos em contacto e deu tudo certo, ele adorou, ele ainda não tinha feito ilustração para livro infantil, foi o primeiro. Então os livros para a infância têm isso que me encanta, que é estar inteiramente envolvido com o projeto gráfico, com as ilustrações e com o mundo visual que tanto me interessa. E depois o público: as crianças dizem “eu amei o seu livro”, entre os adultos ninguém diz que amou um livro meu com essa espontaneidade e esse entusiasmo! “Eu amei o seu livro! Posso ler?”; falo “pode” e elas leem para mim e falam coisas incríveis... Aí você está formando alguém, formando o leitor, é uma sensação espetacular.

 

JF: Voltando à poesia para adultos, no poema “Ideal” deste novo livro fala de uma gangue.

Esse poema é curioso, é um jogo especular com um poema da Golgona Anghel (do livro Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho), ele é praticamente o poema da Golgona reescrito, ligeiramente mudado. Ela também é convidada de uma gangue, isso é o início do poema dela. Então, eu fui seguindo o poema, me associando a ele, por isso é que ela é citada, ela faz parte da mesma gangue, ela vai fazer parte de uma gangue e eu vou fazer parte da gangue de que a Golgona faz parte.

 

JF: E que gangue é este?

É a gangue dos poetas, dos bandidos (risos).

 

JF: E esses bandidos estariam um bocadinho à margem de um certo tipo da conversa oficial sobre poetas. O que acha da relação entre poesia e discurso oficial, poder político?

Olha, a poesia é sempre alguma coisa estranha e estranha ao poder. Ela é uma fala fora do poder, ela é uma retirada para fora do poder, é isso que é a poesia. Por princípio, é uma recusa do poder coercitivo da língua; ela é essencialmente a procura de um lugar fora do poder. Então, ela nunca estará à vontade dentro das instâncias do poder... Mas é desejável que o Estado, materializado em certas instituições, se interesse pela cultura. É preciso não romantizar muito isso, porque a vida cultural e artística precisa de algum tipo de apoio. A poesia existe sobretudo nos livros, depende de editoras, depende de leitores e para que haja leitores é preciso que haja escolas. Inevitavelmente, para que a poesia exista, é preciso uma política pública de educação. Além disso, é essencial que haja editoras, distribuidoras, livrarias, bibliotecas, programas de compra, crítica, imprensa, opinião, enfim, que haja produção e circulação, ou seja, ninguém está fora do circuito. Então, pensar na poesia como uma coisa livre de contingências culturais, históricas, sociais e econômicas é um romantismo frágil, uma ingenuidade. Mas a poesia nunca vai estar a serviço de nenhuma instituição. Alguma coisa nela é irredutível ao poder e é isso que realmente interessa, é para isso que eu queria chamar atenção no poema que você acabou de citar, sobre a gangue, para reafirmar essa ideia do poeta como alguém marginal.

 

JF: Num mundo só de poemas, e menos de poetas, qual seria o seu poema favorito?

(Risos) Essa não é fácil, essa é difícil, mas eu quero responder, detesto não responder. Seria... “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade.

 

JF: Tem alguma embirração linguística e/ou poética?

Não, não tenho nenhuma embirração. Qualquer forma, qualquer palavra, qualquer solução pode estar no poema da melhor maneira; tudo depende de como aquilo se integrou, se aquilo é, de facto, nascido da necessidade de expressão e se essa expressão é a mais justa. Então tudo pode ser feito, tudo pode ser dito.

 

JF: Costuma ler crítica literária? Gosta de ler crítica literária sobre si?

Gosto, sim, gosto.

 

JF: Que gostaria de ler sobre si?

Sempre há alguns aspectos que gostaria de ver tratados, mas eu não vou dizer quais são.

 

JF: Temos uma secção sobre curiosidades literárias. Lembra-se de alguma que pudesse partilhar connosco?

Não sei se é exatamente uma curiosidade. Eu conheci a Sophia. Fui levado à casa dela pelo Gastão Cruz, foi muito emocionante e importante para mim, eu jamais esquecerei. Depois, transformei esse encontro num poema. Então seria isso, uma coisa que para mim foi marcante.

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foi Gastão Cruz quem, em Lisboa, levou-me

a ela, a velha senhora, a senhora bela;

 

era um dia diadema, de azul líquido e sim

simultaneamente matemático;

 

nenhum de nós morreria naquele outono

de arames claros: a hora como que se curvava

 

quando Sophia falava, e então

todas as palavras eram números mágicos.