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Entrevista a Harryette Mullen

Entrevistas

Entrevista a Harryette Mullen

Maria S. Mendes

 Entrevista a Harryette Mullen

 Lisboa, 16 de Junho de 2018 

 

Encontrámo-nos com Harryette Mullen em Lisboa graças a um convite da Casa Fernando Pessoa. Falámos sobre a escrita de tancas, o ensino de poesia e sobre uma pessoa que foi despedida (e posteriormente readmitida) por ter usado a palavra “niggardly” [mesquinho]. Também conversámos sobre descobrir o inesperado na nossa história familiar e perceber de súbito o significado de lugares-comuns como “tighter than Dick’s hatband” [“mais apertado que a fita de chapéu do Dick”]. Chegada ao fim a entrevista, aprendemos que só há uma instrução a seguir para se escrever poesia:

“Podes quebrar as regras, mas tens de fazê-lo com estilo [flair]”. 

 

JF: Costumamos por começar por perguntar aos nossos entrevistados se gostam de poesia, já que há sempre uma pequena hipótese que… 

Haja poetas que não gostem de poesia? Não gostam da poesia dos outros? 

 

JF: Por vezes não gostam da sua própria poesia.

Ah, não. Eu gosto do processo. Reflicto mais no processo do que no produto propriamente dito. Sim, a certo momento vou ter de pensar no texto, mas, assim que ponho mãos à obra, sabe-me bem escrever, ficar completamente imersa no acto da escrita. 

 

JF: Tem uma rotina diária?

Quem me dera. Efectivamente escrevo um pouco todos dias, mas não de uma forma sistemática. Muitas vezes estou simplesmente a escrevinhar e não tem nada a ver com poesia. A minha tendência é para escrever à noite. Quando é que escreve?

 

JF: Também de noite. De manhã estou ensonada e de mau humor. 

Mais noctívaga que madrugadora. [Risos].

 

JF: Ah, sim. Um dos aspectos que aprecio mais nos seus poemas é a complexidade, que parece sugerir que o leitor tem de fazer o seu trabalho de casa. 

Cada poema tem duas leituras: primeiro desfrutamos do poema, da textura, da música. Se calhar ficamos com uma ideia indefinida de uma emoção ou experiência e queremos voltar imediatamente atrás e reler o poema. Muitas vezes somos apanhados de surpresa: começamos a ler o poema e, quando chegamos ao fim, perguntamo-nos: “Como é que cheguei aqui?” Nesse momento queremos ler o poema outra vez e calcorrear o caminho percorrido. Chamou a isso “trabalho de casa”, eu chamo-lhe uma segunda leitura ou a viagem de regresso ao poema. Isso é algo de que falo com os meus alunos, porque a tendência deles é para ler as coisas só uma vez. Como uma vez é imenso para eles, a ideia de que temos de ler um texto duas vezes... — bem, eu peço-lhes que lhe dêem mais atenção. Um poema requer duas leituras. Temos a leitura para descobrir o quê. E, depois, a leitura para descobrir como. Essa é uma forma natural de ler um poema. E sim, por vezes pode exigir algum empenho. 

 

JF: Temos de lutar com o poema. Por vezes dançamos com o poema e por vezes... (risos)…

Esmurramos o poema! [Risos]. Seja o que for que faça, não pára de ler. 

 

JF: Ainda assim, considerando a forma como recorre a adivinhas e anagramas, parece que o que se exige ao leitor é algo que vai além de uma segunda leitura. 

É verdade que vários poemas de Sleeping with the Dictionary foram inspirados por anagramas, palavras que se transformam noutras palavras depois de reordenadas. “Ectopia”, o poema sobre o qual escreveu nos Jogos Florais, não anda longe de uma adivinha, com homofonias, rimas e anagramas de womb uterus que dão pistas para o tema. Em “Bleeding Hearts”, temos anagramas de Crenshaw (um bairro de Los Angeles). Outro poema, “The Lunar Lutheran”, é quase completamente composto de anagramas. Uma série destes poemas começou sob a forma de improvisos à base de anedotas, trocadilhos e jogos de palavras.

Talvez o problema não seja o poema ser complexo ou difícil, mas sim o facto de ser lúdico! Talvez não se comporte como os poemas que o leitor está acostumado a ler. Ou talvez haja um hiato entre a experiência do leitor e a da escritora. Vejo o poema como um dardo apontado ao centro de um alvo. Às vezes estamos no centro absoluto do alvo do poema, outras vezes estamos mais perto do aro exterior.

Por vezes quando estou a ler um poema e me apercebo de que não sou exactamente a leitora que o poeta tinha em mente, tenho de me empenhar para chegar ao centro, talvez descobrindo mais sobre o poeta ou a cultura do poema, o lugar de onde vem, talvez procurando palavras que desconheço. É assim que adquiro mais palavras. Lendo mais, aprendendo mais, acrescentando palavras ao meu léxico. Alguns dos meus alunos não gostam de procurar o significado das palavras. E eu digo-lhes sempre: assim que descobrirem o que essas palavras significam, elas são vossas. Da próxima vez que as lerem, saberão o que querem dizer. Isto resume-se a gostarmos tanto da linguagem que simplesmente queremos acrescentar mais palavras à nossa arca do tesouro. 

 

JF: De certa forma parece haver aqui uma dimensão política. Mais do que estar a acrescentar algumas palavras, está a acrescentar palavras precisas, palavras que, por esta ou aquela razão, não costumam ser consideradas matéria poética, como se as quisesse dignificar e demonstrar que o seu lugar devido é num dicionário e num poema.

Provavelmente muita da literatura clássica que lemos hoje em dia foi, no seu tempo, transgressiva. As pessoas inventavam palavras e iam pedir palavras emprestadas a outros idiomas. Criavam novas formas, mesmo quando isso não era considerado correcto. Ou, em vez de escreverem em latim, escreviam no seu idioma local. Ou escreviam sobre assuntos tabu. Ou sobre coisas consideradas demasiado mundanas ou políticas para serem poéticas. Acho que nos esquecemos de que isso está constantemente a acontecer. Na escola ensinam-nos o que é correcto, mas o que hoje é correcto foi outrora incorrecto. Quando quebramos as regras antigas estamos a criar novas regras. Porque na literatura as regras são ditadas a posteriori. [Risos.] Os poetas emendam as regras sempre que isso é necessário para escreverem os poemas que têm de escrever. Quando o poeta cria algo de novo, analisamos o poema para ver como foi feito. É nesse momento que as regras são revistas.

 

JF: Dito isso, a Harryette parece querer modificar ou subverter as formas poéticas. Não escreve vilanelas ou triolés. 

Certo. Talvez por não ter jeito nenhum para a aritmética. [Risos.] Qualquer coisa que envolva contas... Mesmo quando estava a escrever tancas, assumi que a maioria deles tinha 31 sílabas, mas isso depende da forma como pronunciamos as palavras. 

 

JF: Falou nos tancas e isso lembrou-me de uma entrevista em que disse que a sua mãe tinha dito gostar do seu livro [Urban Tumbleweed] porque finalmente tinha conseguido entender uma das suas obras.

-      Sim! [Risos.] “Até que enfim, um livro que consigo perceber”. 

-      “Tu percebeste o meu primeiro livro!”

-      “Sim, percebi os poemas sobre mim! Mas ainda não capturaste a minha complexidade. Devias escrever mais poemas sobre mim”. 

 

JF: Ela quer aceder à posteridade através das suas palavras. É uma boa forma de pensar. [Risos.]

Ah, sim. [Risos.] Sem dúvida. O meu primeiro livro, Tree Tall Woman, está escrito no tipo de verso livre, directo e coloquial que a minha mãe aprecia. A recolha de tancas, Urban Tumbleweed, também é acessível de uma forma que eu espero seja igualitária. Acho que os meus livros se lêem todos bem e não são difíceis, mas entre o primeiro e o último, a poesia é um pouco mais experimental.

 

JF: Porque começou a escrever tancas? 

É importante esclarecer que não me propus escrever tancas tradicionais. Deixei-me inspirar, ou talvez seja melhor dizer que fui desafiada pelos meus alunos, que afirmavam não ter interesse nenhum na “nature poetry”. Eu andava interessada pela ecopoética contemporânea num momento em que também estava a ler haikus e tancas, poemas japoneses tradicionais que proclamam a união dos mundos humano e natural. A ideia essencial do meu projecto de tancas foi prestar atenção ao modo como interagimos com a natureza enquanto nos deslocamos pela cidade como formas urbanas de tumbleweed.

 

JF: Qual foi a sua perspectiva sobre os tancas?

Enquanto os compunha a compor no meu caderno, os tancas afiguraram-se-me como poemas em prosa muito breves. A forma das estrofes de 3 versos é arbitrária. Não me senti obrigada a encaixar um número fixo de sílabas em cada verso. Penso que um poema japonês tradicional pode consistir numa única linha vertical, não dividida em haikus de três versos ou tancas de cinco linhas, que é como estas formas silábicas são traduzidas ou compostas em inglês. Para Urban Tumbleweed, havia alguma conveniência em pensar em múltiplos de três: um tanca de três linhas com três poemas por página, à semelhança de Muse & Drudge, que compus com quatro quadras por página. A disposição visual da página confere ao trabalho uma certa regularidade e fá-lo parecer organizado. Não obstante, tinha flexibilidade para dividir um verso de 31 sílabas em três linhas. Queria ter espaço à volta dos versos, pelo que os dispus em ziguezague na página para criar um ritmo visual de movimento e pausa, o que era consistente com o impulso inicial do projecto. 

 

JF: Parecem ser pequenas impressões do que ocorreu durante um ano. 

Sim, estava interessada nos momentos efémeros da vida quotidiana. A ideia original era dar uma caminhada e escrever um tanca todos os dias durante um ano, mas, claro, houve dias em que não escrevi nada e outros em que escrevi cinco. Mantive o projecto vivo um bocadinho para lá de um ano até ter decidido como o devia sequenciar, não necessariamente na ordem em que os poemas foram escritos. Tendo os múltiplos de três como princípio ordenador, dividi o conjunto em 366 versos em tanca, que representavam um ano e um dia, ou um ano bissexto de tancas. A maioria dos poemas foram escritos em Los Angeles, mas também escrevi tancas onde quer que estivesse em viagem durante esse ano, incluindo uma semana em Estocolmo.

 

 

JF: Há esta ideia de que podemos encontrar a Natureza...

Sim, encontramos a natureza onde quer que vamos. Não a chegámos a destruir, simplesmente construímos coisas em cima dela. Estou a dizer aos meus concidadãos de Los Angeles: procurem a natureza onde estiverem, porque ainda lá está e nós fazemos parte dela. Assim sendo, vamos tentar tomar conta dela. No meu seminário na UCLA andávamos a ler o que se pode chamar “nature poetry”. Mais precisamente, estávamos a ler Mary Oliver. Alguns dos meus alunos adoram-na, mas outros queixavam-se: não nos conseguimos identificar com isto, somos demasiado urbanos. A Mary Oliver vive no bosque e tem uma epifania sempre que olha para… 

 

JF: Um ganso selvagem. [Risos.] 

[Risos] Sim. Adoro a ideia da Mary Oliver a caminhar pelos bosques à volta da sua casa, onde guardou lápis nas árvores para o caso de se sentir inspirada e querer escrever um poema. No mesmo seminário também lemos Kimiko Hahn, uma citadina que olha para o mundo natural com curiosidade e preocupação, mas sem a ânsia espiritual e a reverência que encontramos em Oliver, nem com o misticismo gnóstico e activismo crítico-ecológico de Brenda Hillman. A escrita de tancas foi em certa medida uma resposta àqueles estudantes que se sentiam tão separados do mundo natural que não se conseguiam identificar com Mary Oliver. Agora impus esse exercício regular no meu seminário de poesia: levar os alunos numa “caminhada de tancas” pelo jardim botânico do nosso campus. Mostro-lhes exemplos de tancas tradicionais incluídos nas antologias compiladas para imperadores japoneses, além de tancas contemporâneos traduzidos ou compostos em inglês.

 

JF: Fala frequentemente sobre o trabalho de ensino. Como é que se ensina alguém a apreciar um poema?

Rita Dove, uma poeta laureada dos EUA, sugeriu que, nas escolas de todo o país, se deveria ler um poema por dia sem se falar sobre ele. Porque é frequente arruinar-se um poema quando se o transforma numa tarefa escolar. Talvez alguns poemas pudessem ser simplesmente dados a ler aos alunos; depois seguia-se o curso normal do dia. Infelizmente é na escola que as pessoas começam a odiar a poesia. Espero não estar a fazer o mesmo. Tento tornar as coisas menos penosas dizendo aos alunos para escreverem um diário e pedindo-lhes que me mostrem as páginas que querem partilhar. Vejo algumas páginas escolhidas, só para me assegurar de que estão a ler e a reagir à literatura, mas é uma oportunidade para eles desenvolverem a sua relação com os poetas e os textos. Dos dez poetas que lemos na aula, podem escolher um ou alguns como tema do ensaio final. Sei que é diferente ler um livro que adoramos e escolhemos ler do que um livro dado a ler por uma professora. O melhor que posso fazer é tentar simular uma parte da experiência de encontrar uma ligação pessoal com o trabalho do poeta. Geralmente haverá pelo menos um poeta entre dez, metade homens, metade mulheres, de que um aluno vai gostar. Estamos a falar de poesia norte-americana, é diversa. 


JF: Quais são os critérios de escolha?

Se estamos a ler poetas contemporâneos, têm de estar todos vivos no momento em que estou a planear o programa. 

 

JF: Gosto disso.

Os alunos podem ler os poetas mortos noutros seminários. 

 

JF: Quem são os poetas?

Varia. Desde que comecei a dar aulas, alguns dos poetas faleceram: Florence Anthony (a poeta conhecida como Ai), John Ashbery, Amiri Baraka, Lucie Brock-Broido, Gwendolyn Brooks, Fay Chiang, Lucille Clifton, Jayne Cortez, Robert Creeley, Allen Ginsberg, Barbara Guest, Michael Harper, June Jordan, Galway Kinnell, Akilah Oliver, James Tate, C.K. Williams, C.D. Wright: agora estão todos mortos. Estava a dar a Gwendolyn Brooks no dia após a sua morte. Abri a aula a ler o seu obituário. Quando dou aulas, é costume começar pelo poeta mais velho. Recentemente foi a Mary Oliver. Nunca costumava dar a Mary Oliver, não sabia quem era. 

 

JF: Gosto dos seus poemas.

Foram os meus alunos que me levaram a ler Mary Oliver. A última vez que dei “Poesia Norte-Americana Contemporânea” lemos, em ordem decrescente de idades: Mary Oliver, Yusef Komunyakaa, Brenda Hillman, Sandra Cisneros, Dean Young, Kimiko Hahn, Martín Espada, Li-Young Lee, Matthew Zapruder e Kiki Petrosino. São muito diferentes mas muito americanos. Li-Young Lee está lá em certa medida para incluir a experiência imigrante. Outros podem ter um pai imigrante, como Cisneros, ou, numa versão diferente do mesmo seminário, Kristin Naca. Na última vez lemos dois asiáticos-americanos, dois afro-americanos, dois latino-americanos; o resto eram “brancos”, mas também com identidades diversas. Sublinho que Mary Oliver e Kimiko Hahn têm antecedentes étnicos similares. Os antepassados de Oliver são ingleses, checos e alemães. Os de Hahn são alemães, japoneses e ingleses. Petrosino e Hahn têm perspectivas diferentes sobre a identidade birracial, e é interessante ver que tipos diferentes de “nature poems” são escritos por poetas que estão a explorar ao mesmo tempo a identidade individual e colectiva. 

 

JF: Actualmente está a escrever? 

Nada que seja poesia. O que ando a fazer há já demasiado tempo — e com isso aborreço tanto os meus amigos que consigo esvaziar uma sala durante as festas... [Risos.] Se alguém me lança a pergunta fatal: “Ainda estás a escrever aquela história familiar?” É isso que tenho andado a fazer. 

 

JF: Entrevistei há pouco tempo Fleur Adcock e ela passou anos a escrever a sua história familiar. A explicação que me deu para isso foi: “Simplesmente apaixonei-me pelos factos, em detrimento da ficção ou lá o que os poemas são”.

Certo. Os factos são cativantes. Comecei pela história oral da minha avó, que, para minha surpresa, incluía alguns detalhes exactos, como os endereços de familiares há muito falecidos, mas que também deixava por responder muitas perguntas cruciais. Percebi que se não falasse com ela tudo se iria perder. Não tenho filhos, mas a minha irmã tem dois filhos e, qualquer dia, eles ou os seus filhos poderão querer ouvir estas histórias. Talvez seja o meu dever enquanto pessoa sem filhos manter erguida esta ponte para o passado. A minha avó era a filha mais nova do seu pai, que tinha sessenta anos quando ela nasceu. Ela viveu até aos noventa e quatro anos. Há aqui muita história. Fiquei desde logo surpreendida por já termos perdido a história dos nossos antepassados escravizados, embora essa história seja, na verdade, bem recente. O pai da minha avó materna nasceu escravo. Era um miúdo quando a Guerra Civil terminou. À excepção da sua mãe, que nasceu depois da Guerra Civil, todos os antepassados da minha avó tinham sido escravos na Virgínia, remontando ao período colonial. O nome familiar da minha avó derivou de uma família proeminente de detentores de escravos, a quem o governador colonial da Virgínia cedeu terrenos extensos. Segundo a história oral da minha avó, ambos os seus pais tinham nascido depois da Guerra Civil, e ela insistia que a sua avó “nunca tinha sido escrava”. Parecia resistir a reconhecer aquilo que a minha pesquisa confirmava, mas eu encontrei vários documentos que indicavam que o seu pai, os seus avós, bisavós e por aí atrás tinham todos sido escravos antes da Guerra Civil. As histórias que ela sabia eram todas sobre as vidas após a Emancipação na Pensilvânia, para onde os seus familiares se deslocaram depois de a guerra ter terminado, e onde ela nasceu. Enquanto pessoas livres, os seus avós e os seus pais tornaram-se contribuintes, proprietários de casas e membros respeitáveis da sua comunidade, especialmente o seu pai, que era pastor de uma igreja. 

 

JF: Ela nunca quis colocar-lhes questões? Em Portugal, as pessoas não gostam de fazer perguntas sobre a Guerra Colonial. 

Penso que as pessoas que tinham sido escravizadas, nos casos em que eram mais novas, declararam ter nascido num ano subsequente à Guerra Civil para não terem de pensar no assunto. Podiam reinventar-se. A Guerra Civil estava praticamente nas traseiras das suas casas. Muitas batalhas decorreram na Virgínia. A minha avó não sabia nada sobre a vida dos seus antepassados enquanto escravos, ou sobre como atravessaram os anos da guerra. Não sabia como é que o seu pai se tinha alfabetizado. Ele não tinha orgulho da sua caligrafia, mas sabia escrever. Era líder comunitário, pelo que recebia menções em artigos de jornal. Tenho um artigo que o descreve a ler a Bíblia num evento público. Isso diz-me que ele era alfabetizado, mas não sabemos se teve oportunidade de ir à escola; talvez fosse autodidacta. Estas coisas intrigam-me. Eu coloquei perguntas que a minha avó nunca se lembrou de fazer.

Agora percebo que a maioria dos adultos na sua congregação religiosa tinham sido escravos. Muitos deles tinham-se deslocado para norte, para a Pensilvânia, vindos da Virgínia e de Maryland. É toda uma comunidade a aprender a viver em liberdade. Foi isso que me entusiasmou. Os pais da minha avó eram a primeira geração da família que sabia ler. Tenho cartas que a minha bisavó escreveu à minha avó. Cartas da primeira geração da minha família materna que tinha a capacidade de escrever e ler. Nos arquivos, vi certificados de matrimónio de casamentos ministrados pelo meu avô. Deve ter-lhe dado prazer de cada vez que assinou um desses documentos, um filho de escravos que tinham sido proibidos de adquirir literacia e a quem foi negada a dignidade do casamento legal.

 

JF: E do seu lado paterno?

Do lado do meu pai, descobri que dois dos antepassados do meu pai cometeram homicídios. Tinha ouvido histórias quando visitava os meus avós no Alabama. Aquilo soava a lendas locais: histórias sobre um branco que viveu com uma mulher negra depois da Guerra Civil. Não se puderam casar porque ia contra a lei, mas tiveram vários filhos, e este homem branco era muito protector da sua família negra. Quando alguém metia os pés no seu terreno ou os perturbava, ele puxava da sua arma e expulsava-os. Acontece que as pessoas nesta história são os meus tetravós. Um dos seus filhos era o pai do meu avô. Por incrível que apareça, este homem branco de linhagem alemã e irlandesa tinha combatido na Guerra Civil pelo lado Confederado. A sua família tinha escravos e ele seguiu as pisadas dos seus irmãos para combater numa guerra disputada devido à escravatura. Acabada a guerra, ele volta a casa e tem dez filhos com esta mulher afro-americana que tinha pertencido ao seu avô irlandês-americano. Antes da guerra, ela e a sua família tinham sido escravas da família dele e, depois da guerra, ela teve dez filhos com este Confederado veterano. Quando comecei a pesquisar esta história familiar, os meus familiares no Alabama enviaram-me uma fotografia desses dez irmãos. Um deles é o meu bisavô. Consegui desenterrar parte desta história porque o patriarca detentor de escravos, o meu antepassado irlandês-americano, tem o primeiro e último nome do meu pai. É um nome tradicional tanto em famílias brancas como em famílias negras. 

 

JF: Vai publicar esta história familiar?

Não tenho a certeza…

 

JF: A Fleur Adcock acabou por publicar a sua história familiar, talvez a Harryette possa fazer o mesmo. 

Sim, podia. Deixou-me estarrecida perceber que esta história de escravatura estava tão próxima de mim. A minha irmã e o seu marido, um economista, estão a escrever um livro sobre a questão das indemnizações aos descendentes dos escravos. Toda a gente lhes diz: “Oh, é demasiado tarde para isso”. 

 

JF: Houve algum tipo de indemnização?

Ah, sim, houve indemnizações, mas sabe quem as recebeu? Alguns detentores de escravos foram indemnizados por perda de propriedade. As indemnizações foram atribuídas a pessoas que detinham propriedade e não às pessoas que tinham sido a propriedade. Já reparou que, nos Estados Unidos, a Guerra Civil ainda decorre? Ainda vivemos com o legado da escravatura. Ainda vivemos no rescaldo dessa desumanização sistemática.

 

JF: É por isso que evita…

Tenho geralmente por hábito evitar insultos raciais e outros termos que desumanizam. Há um poema em Sleeping with the Dictionary, “Denigration”, que gira em torno da ideia de evitar um insulto racial, aludindo ao mesmo tempo à história brutal que palavras como essa evocam. Num sentido literal, “Denigration” não tem a ver com a “palavra N”. O poema foi inspirado pelo escândalo causado quando um funcionário autárquico branco numa cidade maioritariamente negra foi despedido por ter usado a palavra “niggardly” (mesquinho) num debate sobre o orçamento municipal. Soube que a pessoa acabou por ser readmitida, provavelmente depois de as partes interessadas terem consultado os seus dicionários. Não obstante, no debate que se seguiu, pelo menos algumas pessoas sugeriram que os brancos deviam evitar usar a palavra “niggardly” (especialmente na presença de pessoas negras), para evitar serem acusadas de “racismo por homofonia.” O meu poema evita abertamente a palavra censurada, mas inclui “niggardly” e várias outras palavras com o som “nig” ou “neg”. Para contornar a palavra não proferida, o poema recorre à perífrase e à circunlocução.

 

JF: E coisas de que gosta? Clichés?

Gosto de brincar com as palavras, os jogos de palavras dão-me imenso gozo, e gosto de reciclar clichés. Tento dar-lhes um uso um pouco diferente… 

 

JF: Sim, modifica-os sempre. [Risos]

Brinco com os lugares-comuns, ou aludo-lhes, porque essa é outra regra: “Não utilizar clichés”. Procuramos qualquer coisa de novo na poesia. Essa é uma boa regra. Nunca poria uma frase batida ou uma metáfora morta num poema. Pergunto-me muitas vezes, afinal de contas, porque é que este cliché existe? Porque foi tão útil a tanta gente? O que estava a tentar descrever? Tal como os objectos produzidos em massa exibidos como obras de arte por Duchamp, podemos enquadrar um “readymade” linguístico num poema. Há um em Muse & Drudge que eu ouço muito a minha mãe e a minha avó dizerem. Passaram anos até que eu percebesse o que queria dizer. É um símile. Quando qualquer coisa estava muito bem apertada, eles diziam, “It’s tighter than Dick’s hatband” (“Está mais apertado que a cinta do chapéu do Dick”). Quando era miúda, devo-me ter perguntado quem era o Dick e porque é que o seu chapéu estava tão apertado. Um dia, estava a escrever uma lista dessas velhas expressões. Assim que a escrevi, percebi, “Ah, é um preservativo!” Quando levei essa questão à minha mãe, ela disse: “Também nunca tinha pensado nisso”. Repetimos estas frases automaticamente sem pensar no sentido literal. 

                                                                                                                 

JF: É uma coisa que parece fazer muito. Pega em qualquer coisa que, segundo a opinião geral, não deve ser utilizada em poesia e… [Risos]

[Risos]

 

JF: E usa-a. 

Ah, sim. Aí está uma forma de tornar qualquer coisa nova! Em especial se mais ninguém o estiver a fazer por medo de estar a quebrar uma regra. A poesia tem tudo a ver com regras, e não há uma que não possa ser quebrada, mas tens de fazê-lo de uma forma que diga: “A sério? Sim, a sério!” Tens de fazê-lo com estilo e propósito. Sabes o que estás a fazer e por que o estás a fazer. Desta forma, é óbvio que não estás a dar um erro. Estás a fazer uma afirmação.