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Subsídios para uma leitura de três livros ed.viúva frenesi

Subsídios para uma leitura de três livros ed.viúva frenesi

Maria S. Mendes

Rui Baião, Barbearia Tiqqun, ed. viúva frenesi, Lisboa, 2017

Manuel Fernando Gonçalves, Romance Ardente, ed. viúva frenesi, Lisboa, 2017

Paulo da Costa Domingos, Sumo de Limão, ed. viúva frenesi, Lisboa, 2017

 

Gostei destes três livros ao mesmo tempo porque eles surgiram assim e me pareceram suspeitos, lançados por uma editora de poesia que teve um papel muito importante nos anos 80 do século XX, a Frenesi. Por isso fui a uma sessão, que prometia ser “de esclarecimento”, tentar saber porque surgiram, no início de Outubro de 2017, três livros de poesia lançados por um selo que encerrara a sua actividade em 2010 mas ressurgira, póstumo, lançando livros por três vezes ao longo de 2017, sendo a última saída a do presente tríptico, com a chancela ed. viúva frenesi. Fui, portanto, à livraria Paralelo W, de Manuel de Freitas e Inês Dias, no dia 26 de Outubro pelas 18h00, escutar o que Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, adjuvados por Luís Manuel Gaspar, que lia os poemas do autor ausente – Manuel Fernando Gonçalves –, teriam a dizer sobre este enigma. Ou pelo menos sobre o tríptico recém-editado: Barbearia Tiqqun, de Rui Baião, Romance Ardente, de Manuel Fernando Gonçalves, e Sumo de Limão, de Paulo da Costa Domingos. Os livros são independentes, mas a ordem suposta de leitura é esta, diz-nos a sequência do ISBN (e disse Paulo da Costa Domingos aos presentes no lançamento). A semelhança e sequência das capas faz parte do puzzle a montar pelo leitor, como era já demonstrado no cartaz que anunciava a sessão. Mas neste puzzle gráfico fica a faltar uma peça: o que caberia na esquerda baixa do rectângulo, se não estivessem lá escritas as informações do local e da hora?

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As “edições viúvas” da Frenesi não surgiram por acaso, nem ao acaso, em 2017: cumpriram-se então os 30 anos do lançamento da antologia Sião, organizada por Paulo da Costa Domingos, Rui Baião e Al Berto. Sião – Documento Interno, a primeira “edição viúva”, foi dado à estampa para assinalar essa data e lançada por ocasião da exposição que a Sismógrafo [http://www.sismografo.org], no Porto, dedicou à editora e ao editor. É, direi eu, um documento importante para todos os interessados e estudiosos da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, tal como foi, e é, importante a própria antologia. A segunda “edição viúva”, Notas para um prefácio (a haver) com pedido de posfácio, um inédito de Vitor Silva Tavares, foi lançada no dia que assinalaria o 80.º aniversário do editor da &etc, falecido em 2015 — &etc, editora que foi, de resto, berço e ponto de arranque para a existência da própria Frenesi. A terceira “edição viúva”, em tríptico, terá portanto, tudo indica, um significado que está para além da mera reunião de três poetas amigos e cúmplices, que, como foi dito na sessão, não precisaram de se encontrar nem trocar muitas palavras para, em tempo relâmpago, terem prontos os três livros agora publicados.

Não é a primeira vez que Rui Baião, Manuel Fernando Gonçalves e Paulo da Costa Domingos publicam em simultâneo. Já tinha acontecido em 1991, respectivamente com Maligno, As horas certas é que me enervam e Figurações/Campo de Tílias. Indício de cumplicidade poética, para além da aventura histórica na edição e na poesia em Portugal que foi a Frenesi e “o grupo da Frenesi”, entre 1979 e 2010. Fica-me por averiguar se nessa edição simultânea de 1991 se verificará aquilo que nesta se verifica, e que Paulo da Costa Domingos também desvendou: há texto comum aos três livros. Texto que não é óbvio, mas que um leitor atento detectará: um verso, outro verso, uma expressão noutro contexto, um eco. Outra pista dada: o tríptico está perfeitamente equilibrado. O “painel central”, Romance Ardente, de Manuel Fernando Gonçalves, tem no centro o “poema-chave” do conjunto – “Esta alma de que falo, supercara”, com cuja leitura abriu, aliás, a sessão. Para um lado e outro deste centro, o mesmo número de páginas: o livro “central” tem 56 páginas, cada um dos “laterais”, 34. Nada foi deixado ao acaso – não terá sido, portanto, o acaso a ditar esta tríplice “edição viúva”.

Avisada, começa-se a leitura pelo poema central: um estado de alma e o poder do estado sobre a alma; uma declaração de princípios:

 

Como toda a poesia tem princípios,

não sei o que mais tem, é bom que se saiba

que o estado é meu devedor e que não relego

o direito de ser um poeta de luxo, de ninguém

me ler o que, acredito, me torna, assim, universal:

 

Declaração de uma poesia fortemente ancorada na realidade e na consciência da sua irrelevância na economia financeira dos deficits e dos haveres. Declaração de que tal alma, que se arroga acima do Estado, pode incorrer num perigo letal e é, em todo o caso, uma doença social a que nem os médicos escapam, por mais remédios que prescrevam: “Se tivesse ocasião para me aconselhar com o médico que escreve um dos outros livros, era contado que a obra morria aqui mesmo e agora.” Mas afinal é este médico poeta que passa o atestado cúmplice “para faltar ao trabalho/ sem ter de descontar no ordenado/e no tempo de férias”. Actividade sem output válido nos mercados e estado que não se remedeia nem com a ilusão de subsídios:

 

Costumava pensar que um subsídio

é que era, dava um jeitão para escrever

o que significa, de forma mais fria, responder

a esse apelo conforme o clima e a paisagem

 […] Escreveria melhor, decerto

pensaria mais, ostentava outra ousadia

muito mais próxima da realidade, ora não?

 

A questão e a palavra “subsídio”– pensando no carácter não fortuito desta “edição viúva” no percurso da Frenesi — levanta uma lebre: em 1998 foi publicado, de autor anónimo, um livro intitulado Subsídio, Suicídio, Ostras Geladas, de que Paulo da Costa Domingos, sempre sem revelar a identidade do autor, desvendava a intenção, em entrevista à revista Periférica da Primavera de 2002: “No essencial, para nós, o anonimato desse autor pressupunha pôr à prova a completa impotência de aferição crítica dos ‘profissionais’ da leitura. As asneiras então vindas a lume (1998-2000) ainda hoje convulsionam de riso as araras do Jardim Zoológico.”

Mesmo não sendo arara do Jardim Zoológico (e pensando na não coincidência que será o lançamento do programa de bolsas de criação literária em 1997e agora, de novo, em 2017), e não conhecendo essas hipóteses, rio-me, sim, do desafio crítico lançado. Porque se formos ler o poema “Sum”, a páginas 12 a 14 de Suicídio, Subsídio, Ostras Geladas, temos uma resposta sobre o tempo em que Manuel Fernando Gonçalves “costumava pensar” num subsídio. Foi em 1998:

 

Estava, agora mesmo, a pensar

 que sempre me dava jeito um subsídio.

Para escrever. Escreveria melhor, decerto.

Pensaria mais. Seria mais ousado

nas imagens e muito mais próximo

da realidade, decerto!

 

Pegando nesta pista de autoria, e numa leitura rápida, mais superficial do que profissional, constata-se que, em Romance Ardente, pelo menos os poemas das páginas 21, 28-31, 33, 35, 39, 40, 43, 44, 47 e 49 se encontram no livro anónimo de 1998 – alguns reescritos ou burilados, outros parcialmente citados.

O mesmo acontece em Sumo de Limão, de Paulo da Costa Domingos (que na bibliografia actualizada da Wikipédia assume, aliás, Subsídio, Suicídio, Ostras Geladas como uma das suas obras, o que não acontecia em bibliografias anteriores), nas páginas 9, 14, 16, 17, 19, 20-23, 32.

Ganha assim sentido o título de Rui Baião, Barbearia Tiqqun — filiação nesse “Comité Invisível” formado por um colectivo de autores e activistas francês que publicou a revista Tiqqun entre 1999 e 2001, mas aqui com a lâmina afiada a desbastar, a recortar o material do livro anónimo a três mãos, chegando agora à pele de cada autor. Da mesma forma que “Cesura”, título do primeiro poema, indica tanto a pausa no final do verso como o corte a bisturi, e nele encontramos texto que surge também em vários poemas de Sumo de Limão, de Paulo da Costa Domingos, e em poemas “anónimos” de Subsídio…

“Nada é óbvio. Nada é complexo. Nada é anónimo.”, lê-se no parêntesis não assinado antes do início deste livro de Rui Baião. A lâmina e o ardor do sumo de limão: ficam ainda por resolver os versos comuns a estes três livros – a que autor pertencem? A um quarto que falta no puzzle das capas? A um quarto, ou um quinto, ou um sexto de Subsídio, Suicídio, Ostras Geladas?

A edição simultânea deste tríptico como “edição viúva” faz para mim sentido em várias direcções: coloca os poetas e os poemas em novos contextos, 20 anos depois do volume anónimo, e relança um jogo que sempre foi o do editor da Frenesi, que atribuía a nota de copyright de muitos dos livros de sua autoria ao “(© domínio público)”: “Toda a gente tem aqui patentes as mesmas oportunidades: porque a condição necessária da igualdade dos direitos é a igualdade dos poderes”, escreve Paulo da Costa Domingos na nota prévia a Sumo de Limão. E isto é válido para todos — “leitores profissionais” incluídos. Importa então ler. E ler as mudanças de sentido ditadas pela mudança de contexto, e os contextos que regressam, dando ou amplificando o sentido do que resiste, como diz Brian Eno, citado na mesma nota prévia.

Mas esse é um jogo potencialmente sem fim, que não pode caber nestes breves subsídios.

Ana Maria Pereirinha


Ana Maria Pereirinha trabalha em edição, é tradutora e doutoranda no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). A sua relação com a poesia começou no jardim de infância, como slammer avant-la-lettre de grande sucesso, a rimar sobre marmelada e chocolate.